Consultora da Shell demite-se e acusa o grupo petrolífero de causar “danos extremos ao clima e ao ambiente”

Numa carta e num vídeo nas redes sociais, Caroline Dennett diz que apesar de anunciar objectivos de neutralidade carbónica, empresa não abrandou investimento no petróleo e no gás.

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Activista pelo clima protesta em Londres junto à sede da Shell, para perturbar uma reunião de accionistas REUTERS/Hannah McKay

Uma consultora de segurança britânica que trabalhava com a Shell decidiu cortar os laços com este grupo petrolífero da forma mais ruidosa possível e tornou-se um fenómeno viral nas redes sociais: Caroline Dennett enviou uma carta para 1400 funcionários e consultores externos a anunciar a sua saída, porque considera que a Shell está a causar “danos extremos ao clima, ao ambiente, à natureza e às pessoas”, que disponibilizou no LinkedIn, juntamente com um vídeo em que explica as suas razões de viva voz.

“Não posso continuar a trabalhar para uma empresa que ignora todos os alarmes e minimiza os riscos das alterações climáticas e do colapso ecológico”, escreveu Dennett, na carta divulgada no início da semana e que tem já mais de 11 mil partilhas. “Porque, ao contrário das expressões públicas da Shell em torno de atingir a ‘neutralidade carbónica’, não está a reduzir a exploração de petróleo e gás natural, pelo contrário, têm planos para explorar e extrair muito mais [hidrocarbonetos]”, afirmou a especialista britânica que trabalhava com a Shell há 11 anos.

A neutralidade carbónica é uma meta que procura atingir de zero de emissões de dióxido de carbono em termos líquidos [em que tanto dióxido de carbono é retirado da atmosfera como aquele é emitido]. A Shell tem um programa chamado Objectivo Zero que anuncia a intenção de atingir essa meta em 2050. “Parece ser um objectivo honrado, mas estão a falhar completamente. Não importa o que digam, a Shell pura e simplesmente não está a limitar a extracção de combustíveis fósseis”, escreveu.

“Se o núcleo da sua actividade tem a ver com emitir dióxido de carbono [CO2] para a atmosfera a um ritmo que sabemos que não pode ser sustentável, não podemos continuar a fazer isto da maneira como fizemos nos últimos 30 anos”, explicou Dennett à televisão CNBC.

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Manifestante em Londres com máscara do administrador da Shell, Ben van Beurden, tenta perturbar reunião de accionistas do grupo REUTERS/Hannah McKay

Condenação em tribunal

Um tribunal holandês ordenou no ano passado à Shell que se responsabilizasse pela redução em 45% até 2030 (tendo como referência os valores de 2019) das emissões de dióxido de carbono (CO2) que produz directamente, mas também pelas dos seus fornecedores e clientes. Foi uma decisão histórica, que pode ter implicações para as empresas do sector energético em todo o mundo.

Mas o grupo ambientalista que ganhou essa vitória em tribunal contra a Shell num tribunal holandês, que condenou a petrolífera a aumentar os seus cortes nas emissões de gases com efeito de estufa, avisou em Abril os administradores da empresa de que podem vir a ser responsabilizados em termos pessoais se não puserem em prática a sentença. O grupo Amigos da Terra/Milieudefensie disse ter enviado uma carta à administração da Shell e a representantes individuais da direcção, incluindo ao administrador (CEO) Ben van Beurden, sublinhando que a empresa não estava a actuar para pôr o veredicto em prática.

Dennett trabalha numa empresa de pesquisa de mercado, chamada Clout, que começou a colaborar com a Shell em 2011, depois do enorme derrame petrolífero do poço Deepwater Horizon no Golfo do México, nos Estados Unidos, que desencadeou um reforço das preocupações com a segurança em toda a indústria do petróleo e do gás. A função dela era conceber e pôr em prática consultas aos trabalhadores da Shell para perceber se as precauções de segurança estavam a ser aplicadas de forma rigorosa. Com essa informação, Dennett preparava recomendações sobre como melhorar a cultura empresarial relativamente à segurança dos trabalhadores.

E o que aconteceu foi que lhe pediram para reformatar um inquérito sobre segurança para que fosse possível usá-lo em novos projectos para construir gasodutos ou oleodutos e poços de extracção. Foi quando ela decidiu que as coisas não estavam a andar na direcção certa, contou à CNBC. “Sabia que as coisas não se ficariam apenas por estes projectos. Haveria mais. Mais quatro, cinco, seis, sete.”

Por outro lado, Dennett percebeu que a questão das alterações climáticas simplesmente não era discutida internamente na Shell. “Produzimos todos estes inquéritos, que são oportunidades para os trabalhadores darem as suas opiniões, e isso acontece. Mas o resultado final, para a empresa, é muito pouca reflexão sobre alterações climáticas e temas ambientais – para além de averiguar se há poluição nas comunidades locais”, disse Dennett ao canal norte-americano.

“Porque é que as coisas se passam desta maneira? Provavelmente, suspeito que no departamento de relações públicas e no departamento de marketing só falam sobre como podem fazer a Shell parecer como uma empresa mais sustentável. Mas se isso não acontece na frente operacional, então isso não é a cultura da empresa”, explicou a ex-consultora do grupo.

Em resposta a estas críticas de Caroline Dennett, um porta-voz da Shell frisou que o grupo “continua determinado em cumprir a estratégia global para ser atingir a neutralidade carbónica em 2050”, num comunicado citado em vários meios de comunicação. “Traçamos metas para o curto, médio e longo prazo, e tencionamos cumpri-los”, é sublinhado. “Estamos já a investir milhares de milhões de dólares em energias de baixo carbono, embora o mundo ainda precise de petróleo e gás durante décadas para sectores que não podem ser facilmente descarbonizados.”

A carta e o vídeo de Bennett já tiveram o efeito de interromper a assembleia geral de accionistas, que decorreu em Londres na terça-feira. Vários grupos ambientalistas juntaram-se ali para cantar e gritar slogans – como “Nós vamos, nós vamos parar-vos”, usando a música dos Queen We Will Rock You, relata o jornal The Independent – o que impediu a reunião de começar. Os manifestantes acabaram por ser dispersados pela polícia.

Curiosamente, Caroline Dennett disse ao Guardian que se sentiu inspirada a cortar lanços com a Shell depois de ver uma notícia em que manifestantes do movimento Climate Rebellion apelavam a que trabalhadores da Shell deixassem a empresa. Este movimento tem um projecto que incentiva trabalhadores da indústria petrolífera a deixar o sector e a revelar as suas práticas. Ela, no entanto, reconhece que é privilegiada por ter podido afastar-se. A empresa para a qual trabalha tem outros clientes para além da Shell. “Mas muitas pessoas que trabalham na indústria dos combustíveis fósseis não têm essa sorte – é esse emprego ou nada”, disse à CBNC.

Na despedida, Dennett deixou ainda apelo aos executivos da Shell: “Olhem-se ao espelho e perguntem se realmente acreditam que a sua visão para mais extracção de gás e petróleo garante um futuro seguro à humanidade”.

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