Temos “Alquevas debaixo dos pés” e ainda não sabemos como os usar

Proteger as águas subterrâneas o mais possível, usando-as apenas como último recurso? Ou, pelo contrário, utilizá-las muito mais?

Estão sobreexploradas ou subaproveitadas?

As águas subterrâneas são um assunto que divide opiniões.

O país é rico nelas, mas parece conhecê-las mal.

Proteger as águas subterrâneas o mais possível, usando-as apenas como último recurso? Ou, pelo contrário, utilizá-las muito mais? Estão sobreexploradas ou subaproveitadas? As águas subterrâneas são um assunto que divide opiniões. O país é rico nelas, mas parece conhecê-las mal.

São, na maior parte do tempo, invisíveis. Caminhamos sobre rios inteiros, albufeiras, imensas massas de água sob os nossos pés e raramente as vemos. As águas subterrâneas são uma reserva preciosa, mas conhecemo-las mal.

Quando pedimos a João Nascimento, engenheiro de Recursos Hídricos do Instituto Superior Técnico e especialista em hidrogeologia e águas subterrâneas, para escolher um sítio para a nossa conversa, ele sugere que nos encontremos “junto a um furo no Montijo”. As imagens que aí fazemos ilustram perfeitamente este problema: há uma pequena casa que tem no exterior uma espécie de canos e torneiras gigantes pintadas de azul, mas não vemos água.

E, no entanto, estamos sobre o mais importante sistema aquífero de Portugal, o da margem esquerda da bacia do Tejo/Sado, que abastece o concelho de Setúbal, servindo uma população de mais de 100 mil pessoas. São cerca de 8 mil km2 de superfície de água doce guardada no subsolo e que é captada através de estações elevatórias e distribuída num sistema de condutas que podem conduzir a reservatórios ou directamente à rede de abastecimento.

“Captamos a água subterrânea de três maneiras”, explica João Nascimento. “Temos as nascentes, que são água subterrânea que surge à superfície; temos os poços, que são as captações tradicionais; e, a partir dos anos 1960/70, com base na tecnologia dos petróleos, começámos a desenvolver furos, que são captações mais estreitas, mas de grande profundidade” que, na zona onde nos encontramos, atinge os 250/300 metros.

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O que João Nascimento defende é uma ideia que está longe de ser consensual: a de que podemos recorrer muito mais às águas subterrâneas. Este é, na sua opinião, um recurso que não exploramos suficientemente. Porque, sublinha, “quando não captamos a água, ela corre para o mar”. Não é desperdiçada, dado que continua o seu ciclo natural, mas também não é aproveitada. Enquanto isso, apostamos na construção de barragens, reaproveitamento de águas e outras formas de reter água à superfície, esquecendo este tesouro líquido debaixo dos nossos pés.

Furar com critério

Será realmente assim? Ouvimos frequentemente alertas que apontam para a direcção oposta: a de que estamos a sobreexplorar os aquíferos nacionais e que o estado destes é preocupante, tanto a nível da quantidade como da qualidade. É o que diz, por exemplo, José Pimenta Machado, vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). “Estou muito preocupado, mesmo muito preocupado”, confessa, citando nomeadamente o Algarve. “Os aquíferos são um recurso fundamental, uma reserva estratégica fundamental. Infelizmente, a seca e a falta de precipitação não está a permitir que sejam recarregados. A mesma coisa acontece na região do Tejo, embora esteja um pouco melhor.”

Cláudia Sil, activista ambiental da Plataforma Água Sustentável (PAS), partilha esta preocupação com os aquíferos da região. “Todos os aquíferos do Algarve estão abaixo do percentil 20. Ou seja, têm muito pouca água. É evidente que não têm sofrido recarga por causa da redução da pluviosidade, mas também é evidente que a explosão da área de regadio está a contribuir para este fenómeno.”

Uma das grandes ameaças aos aquíferos, na opinião de Cláudia Sil, é a quantidade de pequenos furos que existem, apesar de as licenças para novas perfurações, que são atribuídas pela APA, terem vindo a ser limitadas. “A informação que nós, PAS, temos é que existem 20 mil furos legais, mas estima-se que ilegais sejam o dobro.” Além disso, a agricultura que usa químicos está também a prejudicar a qualidade dos aquíferos. Os pesticidas e herbicidas infiltram-se nos solos, acabando por contaminar as águas subterrâneas.

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Um recurso invisível, debaixo dos nossos pés: o uso das águas subterrâneas não é consensual.

Alexandra Prado Coelho,Cátia Mendonça,Vera Moutinho

O mesmo alerta repete-se nas palavras de Francisco Ferreira, da associação ambientalista Zero. “O caso do Algarve, sobretudo do aquífero Querença-Silves, é o mais paradigmático, mas há outros, em que os nutrientes foram sendo colocados ou em que a forma como se utilizou esse aquífero faz com que agora em muitos sítios não tenhamos águas subterrâneas que poderiam garantir [a sobrevivência de] determinadas culturas agrícolas.” O facto de, quando se tem um furo, não se pagar a água que se utiliza “leva a um uso muito mais intenso dos aquíferos em detrimento das águas superficiais”, afirma.

Água em movimento

É o momento de fazermos uma pausa nos argumentos para percebermos um pouco melhor o funcionamento dos sistemas aquíferos. Para isso, recuperamos uma entrevista feita em 2018 a Luís Ribeiro, engenheiro especialista em águas subterrâneas, entretanto falecido. Dizia ele, durante uma visita ao que gostava de chamar as “águas invisíveis do Lumiar”, no jardim do Museu do Traje: “As águas subterrâneas são águas da chuva. Há pessoas a pensar que vêm do centro da Terra porque são invisíveis e subterrâneas, mas não é assim. Há uma parte da chuva que escoa superficialmente para os rios e outra parte que infiltra. Algumas formações são mais permeáveis, outras são menos. Naquelas que têm mais capacidade para armazenar água, ela vai-se infiltrando e preenchendo os espaços vazios.”

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O Reservatório da Mãe d'Água das Amoreiras foi construído para receber e distribuir as águas subterrâneas transportadas pelo Aqueduto das Águas Livres Nuno Ferreira Santos

É importante compreender que, apesar de estarmos a falar de reservatórios naturais, esta é uma água em movimento. “Claro que as velocidades são muito baixas, mas ela move-se.” Durante o passeio pelo Montijo, João Nascimento, que trabalhou com Luís Ribeiro, reforça a ideia: “A água circula num aquífero. Não está parada. Circula no sentido hidrológico, das zonas mais altas para as mais baixas. Por isso, parte da que não captarmos acaba por descarregar naturalmente nas linhas de água ou directamente para o mar.”

Quando ouvia falar da construção de mais barragens, Luís Ribeiro indignava-se: “Ainda não perceberam que nós, no subterrâneo, temos vários Alquevas.” E lembrava que “basta atravessar o Tejo e já não bebemos água de [barragem de] Castelo de Bode [que serve Lisboa], é tudo água subterrânea, que é de melhor qualidade que a superficial — primeiro porque está protegida e depois porque, como está em contacto com a rocha, é mais mineralizada”.

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Durante grande parte da sua história, também Lisboa foi alimentada por águas subterrâneas. Foi para isso que, no século XVIII, se construiu, com base no percurso do antigo aqueduto romano, o Aqueduto das Águas Livres, um ambicioso sistema de captação e transporte de água vinda da bacia hidrográfica da serra de Sintra, na zona de Belas.

Recolhida em cerca de 60 nascentes situadas a noroeste de Lisboa, a água, transportada por gravidade, era depois distribuída por perto de 30 chafarizes espalhados pela cidade. Só na década de 60 do século XX é que as águas do Aqueduto deixaram de ser utilizadas para consumo humano e Lisboa passou a ser abastecida pela albufeira de Castelo de Bode, no rio Zêzere.

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Só na década de 60 do século XX é que as águas subterrâneas transportadas pelo Aqueduto das Águas Livres deixaram de ser utilizadas para consumo humano Pedro Cunha

A organização da cidade ainda tem as marcas da história da sua relação com a água. “As avenidas Almirante Reis e da República são duas linhas de água”, explicava Luís Ribeiro. “Era uma bacia hidrográfica, tanto superficial como subterrânea, que ia escoar no Tejo.” No Paço do Lumiar, onde conversámos, ainda se vêem antigos poços. “Mas a urbanização foi avançando e perturbou todo o fluxo subterrâneo e também a qualidade.”

Os aquíferos, continua Francisco Ferreira, da Zero, “eram uma forma muito mais resiliente de termos água armazenada”, particularmente valiosa em alturas de menos chuva. “Podemos ter três ou quatro anos de seca, mas a água subterrânea não evapora como a superficial. Tínhamos ali uma garantia. Mas o facto é que ao longo do tempo ou sobreexplorámos esses aquíferos ou os contaminámos.”

Soma-se a este um outro problema. A construção nas cidades levou a uma impermeabilização dos solos que dificulta muito a infiltração das águas e a recarga dos aquíferos. “No passado impermeabilizaram-se áreas que não se deviam impermeabilizar”, criticava Luís Ribeiro em 2018, denunciando a desflorestação e a construção em leito de cheia, particularmente grave no cenário de alterações climáticas que trarão chuvas mais intensas. “As cidades crescem e não há uma leitura da natureza.”

Gerir o que não se vê

João Nascimento mantém-se convicto de que a situação está longe de ser tão dramática como muitos dizem e considera estes alertas demasiado alarmistas. “Temos aquíferos que estão claramente em subexploração, ou seja, conseguimos tirar de lá mais água.” E alguns destes encontram-se no Algarve. “Estamos a falar de uma região riquíssima em águas subterrâneas e discutem-se outras soluções tecnológicas como é o caso das dessalinizadoras, quando há muito onde ir buscar água.” Qual é, então, a dificuldade? “É que gerir um sistema aquífero é muito mais complexo do que gerir uma água superficial. Porquê? Porque não se vê.”

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João Nascimento, especialista em hidrogeologia e águas subterrâneas, defende um maior uso deste recurso em Portugal daniel rocha/PUBLICO

Os cálculos para a gestão dos aquíferos são feitos com base na recarga média anual, ou seja, sabe-se qual a capacidade de recarga de um determinado aquífero num período de 30 anos, por exemplo, e calcula-se a partir daí, de forma a não retirar demasiada água e a garantir a sustentabilidade do aquífero. O nível piezométrico mede a altura a que a água se encontra — e se está abaixo do percentil 20, a situação é considerada preocupante.

Para João Nascimento, este é um critério “cego”. Porquê? Porque nos diz pouco. As medições do nível da água são feitas num determinado ponto do aquífero e depois extrapoladas para o restante. Esse ponto, diz, pode estar mais abaixo por alguma razão e isso não se aplicar a todo o aquífero.

O que defende é que se apliquem “ferramentas de gestão dos aquíferos baseadas em métodos mais robustos e muito mais complexos do ponto de vista matemático”. Estamos a falar, por exemplo, de modelos em computador que permitem introduzir diversas variáveis: “Podemos fazer simulações, pondo mais chuva, cenários de alterações climáticas, pessoas a tirar mais água, pessoas a tirar menos água, e vamos saber o que acontece nesse aquífero.” São sistemas que “já existem em Portugal”, mas continuam a ser pouco utilizados, diz, porque se privilegiam “indicadores que tornam a gestão mais cega”.

Mais calor, mais água doce a circular

Voltemos ao caso de Lisboa. “Para além das águas termais conhecidas, Lisboa tem formações geológicas com grandes capacidades aquíferas. Há estudos que fizemos junto ao rio (e não é água do rio, sabemos isso pela salinidade) em que conseguimos tirar seis ou sete mil litros por hora com um rebaixamento mínimo no furo. Não são águas com qualidade para consumo humano, mas têm grande potencial de uso” para rega de jardins, por exemplo.

Este tipo de captações tem ainda outra vantagem, na perspectiva deste especialista: em certas zonas, “minimizam a altura da água, minimizando também as cheias”. Isto significa que, ao aliviar a pressão dentro de um aquífero, evita-se que, numa situação de chuvas intensas, a água acabe por correr em muito grandes quantidades para um rio e provoque uma cheia.

Parece contraditório falarmos de excesso de água quando o que se discute cada vez mais é a seca e a escassez provocada pela crise climática. João Nascimento não desvaloriza esse problema. Mas, antes disso, o melhor será ouvirmos o presidente do Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), Miguel Miranda, explicar o que é o ciclo da água e como é que as alterações climáticas estão a ter efeito sobre ele.

“A água doce existe na terra porque há uma película muito pequenina de água salgada, a que chamamos oceano, que evapora, vai para a atmosfera e depois precipita outra vez. Fica muito pouco tempo na atmosfera, apenas alguns dias. E ao precipitar, uma parte dela vai ser escoada à superfície sob a forma de rios, e a outra vai penetrar na camada mais rochosa e vai circular como água subterrânea.” O que acontece, sublinha, é que “estando a temperatura a aumentar, em princípio o sistema acelera um bocadinho e vai pôr mais água doce a circular”.

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Há quem defenda um maior uso das águas subterrâneas para combater os períodos de seca Miguel Manso

Uma das consequências desta alteração são os chamados fenómenos extremos, a que temos vindo a assistir em certas zonas do planeta — chuvas muito intensas, cheias, solos incapazes de reter tanta água, que corre descontroladamente para os rios e mares, muitas vezes arrastando tudo pelo caminho. Isto enquanto noutras partes do planeta a terra seca sob o céu sem nuvens e animais e humanos morrem de sede e de fome.

Miguel Miranda considera que nos adaptámos ainda muito pouco a estas condições. “A Hidrologia como ciência está parada há quase um século. Não tem tido grande capacidade de evolução. Os romanos usavam aquedutos para levar água às cidades e nós agora temos um aumento de precipitação em termos globais, mas temos zonas da Terra que vão ser abandonadas por falta de precipitação. Vamos compensar isso transportando água? Abandonando áreas?”, interroga-se.

É no desconhecimento que ainda temos da real resiliência de cada aquífero que reside o maior problema, reconhece João Nascimento. Até hoje, a maior parte dos aquíferos nacionais (mas não todos) têm revelado uma boa capacidade de recarga. “Mas se não ocorrerem precipitações significativas durante cinco, dez anos, não saberemos qual a capacidade que o aquífero tem de continuar a garantir o abastecimento, e daí a dificuldade em geri-los.”

Sabe-se, contudo, que eles “beneficiam de uma precipitação mais regular” e que os tais fenómenos extremos, com grandes chuvadas concentradas num curto período, não são favoráveis. “Se a precipitação aumenta, dá-se mais escoamento, porque não há o contacto prolongado da água no solo”, explica. A conclusão é esta: “Com as alterações climáticas, é esperada uma redução das possibilidades hídricas no futuro.”

“Gajos malucos a estudar coisas misteriosas”

Se a quantidade é complicada de medir, a qualidade revela-se mais fácil. Mas os dados não são animadores: segundo a Zero, dos 62 aquíferos de Portugal (que representam 7900 hectómetros cúbicos de água), existe informação disponível sobre 54, sendo que 49 deles apresentam níveis de contaminação com azoto amoniacal e nitratos, atribuídos essencialmente “à agricultura e pecuária intensivas”.

Pimenta Machado, o responsável da APA, garante, por seu lado, que a agência tem estações de controlo e “milhares de dados” que permitem acompanhar o estado das massas de água por todo o país. “Muito tem sido feito”, mas “ainda temos caminho para fazer” se quisermos atingir o objectivo que é “o bom estado de todas as massas de água da nossa rede hidrográfica”.

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A contaminação dos aquíferos é atribuída a práticas agrícolas e de pecuária intensivas PAULO PIMENTA

Entre as preocupações, está ainda a intrusão salina, sobretudo quando os aquíferos estão mais próximos do mar e a captação de água através de furos é excessiva, acabando a água do mar por entrar na massa de água doce. É mais uma situação à qual é preciso estar atento.

Rodrigo Oliveira, responsável por um importante estudo, apresentado no final do ano passado, sobre as disponibilidades hídricas do país, confirma que a dificuldade maior tem que ver com a falta de informação. “Cada aquífero é um aquífero. É muito difícil avaliar o uso. São dezenas de milhares de furos em operação numa dada região. É muito difícil monitorizar essas dezenas de milhares. Esse é um dos grandes desafios na gestão dos recursos hídricos: arranjar forma de monitorizar melhor quanto é que estamos a utilizar de águas subterrâneas.”

É fundamental fazê-lo. A Directiva-Quadro da Água da União Europeia estabeleceu como meta alcançar o bom estado quantitativo de todas as massas de água subterrâneas europeias até 2027. Em Portugal, a APA promete “capacitar com instrumentos e nova tecnologia, para proteger melhor” porque “só se gere o que se mede”.

“Temos condições geológicas muito boas”, dizia Luís Ribeiro em 2018. “Estou nesta luta desde 1978. Sou do tempo em que éramos considerados loucos, gajos malucos a estudar coisas misteriosas.” Foi só com a entrada para a União Europeia que Portugal se viu “obrigado a conhecer melhor as águas subterrâneas”, mas mesmo assim as decisões políticas continuaram a valorizar as barragens e a captação de água à superfície.

João Nascimento recorda o trabalho com o amigo já desaparecido e lamenta que hoje, passados tantos anos, continue a haver uma separação entre os especialistas em águas superficiais e os que estudam as águas subterrâneas. Tarda a surgir um olhar abrangente, que olhe para o sistema como um todo e que planeie a gestão dos recursos hídricos num equilíbrio entre as várias fontes disponíveis, e o que cada região tem e precisa. “O maior fascínio para mim nas águas subterrâneas”, confidencia, “é a incerteza a elas associada”. Nunca sabemos tudo, porque, no final das contas, “estamos a lidar com o invisível”.