“Que força é essa?”

Hoje, como acontece várias vezes com mais ou menos intensidade, o PCP e os comunistas estão sob ataque cerrado na comunicação social.

Conheci José Pedro Soares em 2012. Viajávamos de comboio, entre outros destinos, até aos “campos da morte” em Auschwitz onde, além de visitarmos o campo assistiríamos a uma homenagem ao seu dia de libertação pelo exército russo. Na verdade, eu não fazia ideia de quem era José Pedro Soares, até que, depois de assistirmos a uma peça de marionetas em Cracóvia (Kamp, de Hotel Modern) seguimos viagem e nos juntámos na carruagem-bar, começámos a falar e, em minutos, só a voz do Zé Pedro soava.

Todos nós ficámos demasiado atordoados, embargados e esmagados com o que ouvimos.

“É a primeira vez que falo disto”. Recordo-me da imensa doçura e tranquilidade na sua voz. “Foi a tortura mais longa de Peniche. Estive em pé mais de 40 dias, acordado, luzes acesas”. Contou que para não adormecer os guardas apitavam, incessantemente. Os pés incharam até rebentarem os sapatos. Nunca sabia que dia era e já não sabia se as conversas que tinha eram imaginadas ou reais. A todo o tempo lhe diziam para falar, todos já tinham falado. Mas Zé Pedro não falou. Queimavam-lhe os mamilos e o escroto com pontas de cigarros. Mas não falou. E sobreviveu, libertado em Abril de 74. Embora a sua ficha da PIDE nunca tenha sido encerrada.

Eu fiquei envergonhada por não saber esta história. E comovida porque o Zé Pedro se tinha sentido à vontade connosco para nos contar coisas tão horríveis pelas quais tinha passado.

Enquanto visitámos os campos da morte, explicava-nos: “havia celas exatamente iguais a esta” - o espaço era exatamente o suficiente para alguém ficar sempre de pé, sem qualquer apoio ou encosto. Uma espécie de quadrado com muretes no chão. Ficámos sem perceber se foram os portugueses fascistas que ensinaram aos nazis se o contrário, mas a tortura era a mesma.

Não lhe foi fácil contar-nos isto. Calou-se muitas vezes.

Não nos foi fácil ouvir porque ninguém entende esta força.

Tive o privilégio de o ouvir, como ouvia o Tereso, durante a campanha do “Sim” pela IVG (em 2007) a contar a espetacular fuga de Caxias a 4 de Dezembro de 1961 e como ainda se zangava porque teve que fazer o papel de “rachado”. Os “rachados” eram os que quebravam e delatavam os seus camaradas. E o Tereso, em Caxias, tinha uma tarefa que poucos conheciam: aproximar-se dos guardas e do diretor e convencê-los das suas habilidades como mecânico (era mecânico da Carris). Ao ponto de protagonizar discussões com os seus camaradas para convencer os guardas e se transformar em trabalhador da prisão. Com a sua perícia (e o desprezo dos seus camaradas), torna-se no mecânico pessoal do diretor da prisão e desafia-o: pôr o carro blindado de Salazar a funcionar de novo.

E assim foi, Tereso tinha autorização para conduzir o carro blindado dentro da prisão e, como num guião de cinema, passa pelo recreio, recolhe José Magro, Francisco Miguel, António Gervásio, Domingos Abrantes, Guilherme da Costa Carvalho, Elídio Esteves e Rolando Verdial e com o blindado, sob uma chuva de balas, rebentam o portão da prisão com o carro do ditador.

Também conheci José Ernesto Cartaxo no movimento sindical e ainda hoje o seu exemplo de análise e luta me guiam. Como, depois de o ler tantas vezes, conheci Mário de Carvalho quando injustamente detiveram o seu neto por lutar por melhores condições de vida.

Todos eles gigantes, sobre os ombros de quem caminhamos em liberdade, e, no entanto, se procurarmos, pouco se sabe deles. O PÚBLICO decidiu homenageá-los, em 2015. Todos tinham algo em comum: serem comunistas.

Mas é aqui que faço a interseção com o assunto que me move.

Hoje, como acontece várias vezes com mais ou menos intensidade, o PCP e os comunistas estão sob ataque cerrado na comunicação social. O nosso país, mais do que nunca, é assolado por jornalistas, diretores de revistas que não têm qualquer problema em disseminar ódio nas redes sociais, nas suas crónicas, nos seus comentários televisivos contra membros do Partido Comunista Português. Em práticas de má memória, nomeiam membros do PCP de forma acintosa, listam jocosamente nas suas redes sociais membros do PCP, sugerem que podem ser alvos de processos crime. Ao ponto de termos o conhecido criminoso racista a concordar e a mimetizar tudo o que uma jornalista diz. Aliás, a tornar realidade o que essa jornalista pede.

Perdeu-se a memória histórica, perdeu-se a vergonha, perdeu-se o pudor em lançar publicamente insultos retrógrados, em listar membros militantes ou simpatizantes, a pôr em causa as suas profissões. Como uma célebre lista macartista na qual bastava que lá se colocasse o nome para se pôr em causa a vida dessa pessoa. E não tenhamos ilusões, há vidas em causa. Em 2015, um militante comunista foi barbaramente agredido e quase morreu depois de agredido por um neonazi. Porquê? Trazia uma bandeira. O racista Mário Machado não se coibiu no seu canal de Telegram de publicar um vídeo que pode ser interpretado como um apelo à agressão física dos comunistas.

O ódio já está a levar a melhor. Há mesmo quem já ponha em causa que o Estado Novo tenha sido totalitário.

E eu volto ao José Pedro Rodrigues, ao Tereso, ao Quintino (que foi Mário na clandestinidade e um amigo de longa data), às mulheres da revolução (Sofia Ferreira, Teodósia Gregório, Conceição Matos e tantas outras) e penso nos que ficaram pelo caminho e nos que ainda cá estão: devo-lhes poder ter um salário mínimo, férias, ir a um hospital, sair do país sem autorização de um homem, ter planeamento familiar gratuito, poder sindicalizar-me, poder ter uma associação, poder manifestar-me, poder ler os jornais que quiser (não sei bem até quando…). E a muitos jornalistas, comunistas, que também construíram Abril e Maio, devo-lhes poder ainda recorrer à comunicação social porque dependo dela para conhecer o país e o mundo. E devo a muitos jornalistas conhecer a realidade à minha volta e espero poder contar com eles, sejam de que partido forem.

E aos muitos comunistas que conheço, devo-lhes a minha liberdade e a certeza de que, se algum dia ela estiver em perigo, serão os primeiros, na linha da frente, a lutar novamente pelos meus direitos, pela minha dignidade, pela minha vida, com a sua, se necessário for. E sei que serão os únicos que o farão por mim e por todos. Porque são assim, os comunistas. Não terminam em si mesmos.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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