Isolamento, arbitrariedade, violência, companheirismo, protesto e educação. De tudo isto falam os homens que passaram anos, ou alguns meses, presos na Cadeia do Forte de Peniche antes do 25 de Abril de 1974. Treze antigos presos políticos, todos detidos por pertencerem ao Partido Comunista Português, recordam como foram parar à fortaleza e o que lhes ficou dessa experiência de privação da liberdade numa das prisões do Estado Novo. São histórias de tortura e de luta, de um tempo assim não tão distante.

Adelino Pereira da Silva

n. 2 de Fevereiro de 1939, Ermidas, Santiago do Cacém

Preso em Peniche entre 24 de Março de 1964 e 10 de Outubro de 1969

Adelino não o sabia na altura, mas a primeira tarefa que lhe foi atribuída, quando entrou para o Partido Comunista Português, em 1959, estava intimamente ligada com o que seria uma das maiores afrontas ao Estado Novo e ao seu governante máximo, António de Oliveira Salazar — a fuga, a 3 de Janeiro de 1960, de Álvaro Cunhal e de nove outros presos da Cadeia do Forte de Peniche.

Mandaram-no tirar a carta de condução assim que entrou na clandestinidade. Fê-lo, por intervenção do partido, “em quinze dias”, e, depois de algum tempo a montar tipografias clandestinas, no final daquele ano de 1959, chamaram-no. “O Pires Jorge diz-me: ‘Vais ter uma tarefa que é fazer trajectos, todas as alternativas, entre Lisboa e Peniche.’ Eu disse, está bem, mas queres que registe? ‘Não, sem registo. Vais temporizar a distância, vês quais as velocidades mínimas e máximas, quais as alternativas de caminhos.’ Aquilo fez-me uma certa confusão, porque ele não explicava mais nada. Só mais tarde é que vim a saber que tinha que ver com a fuga”, conta.

Adelino percorreu então todas as velhas estradas nacionais entre Peniche e Lisboa. “Direito a Torres Vedras, direito ao Bombarral, enfim… Fui temporizando, vendo caminhos, quanto tempo demorava, mesmo em alturas de chuvisco e mau tempo, porque ele dizia: ‘Mas vê tudo, quando estiver a chover, qual a velocidade, vês os caminhos, se o carro aguenta, se não aguenta.’ Ainda por cima, naquela altura estava a fazer isto com um daqueles ‘carochas’.”

Chegou formalmente ao PCP com 20 anos, mas na prática já por lá andava desde sempre. Os pais eram membros e ainda Adelino era criança quando a casa de família se tornou “ponto de apoio” para reuniões da direcção do partido clandestino. Apareciam por lá “Pires Jorge, Dias Lourenço e outros”, recorda. “Para mim eram os tios. Passei a ter muitos tios. Tios e tias. E a coisa nasce aí.”

Quando já estava na clandestinidade, Dias Lourenço comunica-lhe que vai “montar uma casa de apoio” com uma companheira, dando-lhe um conselho: “Não é para serem companheiros, mas se se entenderem…”, recorda. Entenderam-se, tiveram um filho, Alfredo, que na altura da prisão de Adelino ainda não tinha 3 anos.

Foi preso pela PIDE a 31 de Janeiro de 1963 e o primeiro auto de interrogatório tem o data do seu dia de anos: 2 de Fevereiro. Neste e em todos os que se seguiram, a parte destinada ao preso, no que seria a resposta às várias perguntas dos agentes, tem sempre a mesma expressão: “Que se recusa a responder”. Nem responde nem assina, apesar da pesada tortura a que é submetido (14 dias de tortura do sono, com uma pequena interrupção de poucas horas ao fim dos primeiros sete, e espancamentos que o levam ao hospital-prisão de Caxias) e dos dias enfiados nos curros do Aljube. Em Peniche, apesar de se encontrar em regime de observação durante quase cinco anos (o que significava um isolamento só quebrado pela hora do recreio e as refeições, alturas em que estava proibido de falar com os outros presos), assumiu responsabilidades, desde o início, na troca de mensagens — essenciais à denúncia do que ali se passava e à organização da resistência interna. Casou-se por correspondência com a companheira, Alice Capela, presa em Caxias em 1966, e só a partir daí se puderam corresponder. Para o filho, desenhava postais que a Censura fazia questão de visar.

Diz que nunca esteve sozinho. “Costumo dizer, mesmo preso nunca estou só, porque sei que ao meu lado está gente. Sei que lá fora está gente a combater e que a luta não parou.”

Imagem Cedida pelo ANTT

 

Álvaro Monteiro

n. 4 de Setembro de 1942, Lisboa

Preso em Peniche entre 25 de Fevereiro de 1972 e 11 de Julho de 1972

Álvaro foi preso pela PIDE a 21 de Dezembro de 1967. Tinha organizado, pouco mais de um mês antes, “uma sessão de música, cantares e declamações de poesia, sem prévia autorização”. Foi a sua primeira prisão.

Era presidente da direcção do Cineclube do Barreiro e foi um dos responsáveis pela organização de um sarau cultural que levou ao pavilhão do Luso–Futebol Clube José Afonso, Rui Pato, Odete Santos, Carlos Paredes, Fernando Alvim, Teresa Paula Brito, Adriano Correia de Oliveira e Mário Barroso (estes últimos sem terem actuado).

Ao regime incomodou aquele pavilhão cheio de jovens oriundos de Lisboa que, insistentemente, pediam a José Afonso que cantasse Os Vampiros — o que o cantor haveria de fazer, acompanhado pelo público, bisando a música que marcou o fim do espectáculo.

Álvaro, membro do PCP há mais de quatro anos, foi chamado à GNR. Apresentou-se voluntariamente, pensando que estaria em causa o pagamento de taxas que ainda não tinham sido saldadas, relativas ao espectáculo de 11 de Novembro. Só que o guarda fechou-o numa sala, dizendo que a ordem vinha, afinal, da PIDE. “Pensei: já estou tramado. Não tinha almoçado. A minha mãe tinha posto o almoço em cima da mesa e eu disse ‘eu venho comer, vou só ali à GNR e volto já, que eles são uns chatos e tenho de estudar’.”

Torturado, acabou por só regressar à liberdade, sem qualquer acusação, a 30 de Janeiro de 1968, depois de passar pelo posto da PSP de Setúbal, pela sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, e pela prisão de Caxias, onde esteve, desde 11 de Janeiro, em regime de isolamento contínuo.

Voltou a ser preso a 3 de Maio de 1970, depois de ter sido um dos candidatos da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) às eleições para a Assembleia Nacional do ano anterior. Dois dias antes tinha participado no 1.º de Maio, numa manifestação que, segundo um informador da PIDE, juntou “cerca de cinco mil pessoas” entre o Barreiro e a Moita. A GNR disparou rajadas de metralhadora para o ar, os manifestantes atiraram pedras. Álvaro Monteiro e sete outros, todos anteriores candidatos da CDE, foram detidos e levados para o Porto, antes de serem transferidos para Caxias a 1 de Junho.

Numa carta apreendida pela polícia política, sobre este período referia: “Na PIDE fui submetido à tortura do sono e estátua por um período total de 150 horas, sendo 50 consecutivas no Porto e 100 consecutivas em Lisboa. Em ambas as sessões de tortura fui violentamente agredido e perdi a consciência, tendo tido visões e fases de delírio”. Julgado a 21 de Dezembro de 1970 por desenvolver “actividades delituosas contrárias à segurança do Estado”, foi absolvido. “E agora a última” — diz sobre as suas detenções — ,“aquela que me levou a Peniche. Esta foi no dia 30 de Junho de 1971.” Vítima da denúncia, como centenas de outros, por parte do dirigente do PCP Augusto Lindolfo, Álvaro Monteiro não consegue iludir mais a PIDE sobre a ligação que esta sempre tinha procurado àquele partido. Condenado, em 24 de Janeiro de 1972, a 20 meses de prisão, é transferido cerca de um mês depois para Peniche, segundo ele, como represália pela participação num levantamento de rancho em Caxias.

Sobre o forte diz que era “uma cadeia terrível, tétrica”. Mas acredita que as condições melhoraram com a chegada de um grupo de presos em que ele se incluía, que não tinham sobre as suas cabeças o peso de anos de encarceramento nem as medidas de segurança que podiam deixá-los ali indefinidamente.

Foi libertado a 11 de Julho desse ano.

Imagem Cedida pelo ANTT

 

António Borges Coelho

n. 7 de Outubro de 1928, Murça

Preso em Peniche entre 1 de Outubro de 1957 e 21 de Maio de 1962

A 3 de Janeiro de 1960, António não fugiu da Cadeia do Forte de Peniche. Podia tê-lo feito, tal como os outros dez detidos que se encontravam no mesmo piso. Escolheu ficar. “Não queria continuar a minha vida de funcionário do partido e queria de facto seguir uma via de investigação e de escrita, que foi a minha vida”, diz. Garante que “nunca” se arrependeu desta decisão, mas não esconde as suas consequências. “Marcou-me muito, pessoal e externamente. Considero que a fuga foi um dos grandes momentos da história do passado e solidarizei-me com ela, vibrei com ela, mas nem sempre foi compreendida a minha não participação.”

O professor e historiador que ainda em Novembro foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República, depois de ter sido distinguido com o Prémio Universidade de Lisboa, refere-se a marcas mais duradouras, entre os que o conheciam.

A fuga de Álvaro Cunhal e nove companheiros durante a noite trouxe consequências brutais. António foi transferido para Lisboa, a PIDE submeteu-o à tortura da estátua e enviou-o para o Aljube, onde ficaria seis meses encerrado num dos curros, sem acesso a qualquer contacto. “Era a represália pura e simples. O Salazar ficou doido. Foi um acontecimento político de alta importância. Era a cadeia de mais alta segurança e era uma direcção do Partido Comunista que era posta em liberdade”, diz.

António Borges Coelho nasceu em Murça em 1928. Antes de rumar a Lisboa envolveu-se na criação de uma biblioteca popular (e ilegal), cuja descoberta acabaria por pôr a PIDE no seu encalço. Na altura, o jovem que quisera ser padre franciscano já se mudara para Lisboa. A polícia política demorou a localizá-lo. Quando lhe manda uma convocatória para a Junta Autónoma das Estradas, onde trabalhava depois de abandonar a universidade, para que comparecesse na directoria da PIDE a 18 de Julho de 1953, a fim de ser ouvido, Borges Coelho, que já integrava o MUD Juvenil, desaparece. “Estive dois anos sem casa própria, sem salário, vivia daquilo que a organização conseguia. Dormi em muitas casas em Lisboa, e ao cabo de dois anos fui convidado para funcionário do Partido Comunista e lá estive meio ano.” Passado esse período, a 3 de Janeiro de 1956, quando “ia começar a almoçar”, duas brigadas da PIDE entraram na casa em que se encontrava. Foi detido “por actividades subversivas”. Na altura, era responsável por “controlar a juventude” no PCP.