A Pampa, Borges e o olhar de Mona Lisa

Argentina: País das Pampas ou dos Pampas? Porque a língua não vive apartada de quem a esculpe, mergulhemos na poesia de Jorge Luis Borges, para encontrar a resposta.

“Pampa”. Planície imensa em que escasseiam as árvores, rica de pastos, típica da região meridional da América do Sul: Brasil (Rio Grande do Sul), Argentina e Uruguai. Lugar de encontro e silêncio.

Nascido do quíchua, o termo é acolhido, enquanto substantivo de dois géneros, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da coordenação de José Pedro Machado, no Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, e no Grande Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António de Morais Silva. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, preconiza, tão-só, o masculino.

Reminiscências da literatura brasileira? A título de exemplo, na crónica Médico de flores, inserta em Para Viver um Grande Amor, Vinicius de Moraes emprega o género masculino. Rememorando 1945 e um infausto voo de hidravião, o Poetinha descreve a imprevista amaragem numa das lagoas que abençoam o pampa uruguaio. Nos versos de Perda, Carlos Drummond de Andrade evoca “os ervateiros do Sul”, “as rendeiras sentadas, cachimbando e tecendo, “a gente que trabalha nos mundos do Brasil”, “os cavalos do pampa”.

Além-fronteiras, o Diccionario de la lengua española, da Real Academia Española, e o Dicionario, da Real Academia Galega, consagram “pampa”, na acepção em análise, como substantivo feminino. Por seu turno, o vetusto Diccionario Argentino (1910), de Tobías Garzón, apenas lhe atribui valor adjectival. Na respectiva definição, alude, todavia, à pampa austral, contígua à Patagónia, que se espraia entre o rio da Prata e a cordilheira dos Andes.

Leva-nos este bosquejo a reflectir sobre os lados masculino e feminino deste bioma. Argentina: País das Pampas ou dos Pampas?

Porque a língua não vive apartada de quem a esculpe, mergulhemos na poesia de Jorge Luis Borges, para encontrar a resposta.

Em Al Horizonte de un Suburbio, o poeta — enlevado pela força telúrica — confessa: “Pampa: / El ámbito de un patio colorado me basta / para sentirte mía. / […] Pampa sufrida y macha que ya estás en los cielos. / No sé si eres la muerte. / Sé que estás en mi pecho.”[1]

Em Versos de Catorce, adentra em Buenos Aires: “a mi ciudad que se abre clara como una pampa, / yo volví de las viejas tierras antiguas del Occidente”.[2]

No poema Alusión a la Muerte del Coronel Francisco Borges (1833-1874), último adeus ao seu avô paterno, morto em combate, lemos: “Esto que lo cercaba, la metralla / esto que ve, la pampa desmedida, / es lo que vio y oyó toda la vida.”[3]

O texto La Pampa y el Suburbio Son Dioses ilustra a relação mística do escritor com a planície: una e indivisível.

No ensaio La Pampa, publicado no diário argentino La Prensa em 1927, o porteño revela que o majestático “pampas” — cunhado pelos Ingleses, com laivos de poética ironia — encerra grandiosidade. E lembra que, no primeiro versículo do Livro do Génesis, o nome de Deus é também plural: Elohim. Deslumbrado, une-se à nostalgia da paisagem e nela encontra a eternidade.

Eis o chão pisado por Borges, outrora desvelado por Walt Whitman numa das folhas de erva que flutuam no tempo. Em Salut au Monde!, Whitman descerra a porta do Universo e alumia cada deserto, cada mar, cada rio, cada montanha, cada país, cada cidade, cada rua, cada recanto: do Atlântico ao Pacífico, do Cáspio ao Mediterrâneo, do Ganges ao Nilo, dos Himalaias aos Pirenéus, de Madagáscar ao Camboja, de Pequim a Lisboa.

Imerso num mapa vorticoso, Whitman percorre locais ignotos. Sem bússola, entrega-se ao atlas da imaginação. Recolhe símbolos, sons, salmos. Desvenda lendas, mitos, contos ancestrais. Observa peregrinos, filósofos, mercadores, servos, marinheiros, piratas. Omnipresente, a todos acena. Magnânimo, a todos se dirige. Errante, tudo congloba. Solitário, alberga no coração o coração da humanidade.

Deparando-se-lhe a planura, contempla o gaúcho e o cavaleiro: “I see the Wacho crossing the plains, I see the incomparable rider of horses / with his lasso on his arm, / I see over the pampas the pursuit of wild cattle for their hides.”[4]

Pampa: uma palavra, um pedaço de mundo. Conhecer o seu sentido é descobrir a sua história. Caminhar nas suas margens é dissipar a ilusão.

Que vemos nós? Dessa terra chã, avista-se o passado, a raiz. Nela se abraçam sonho e memória. O tempo dilui-se na brancura das manhãs. O pó, na tinta de poetas.

Na pena de Borges, a pampa tem olhar de mulher: é luminosa, infinita. Honremos a tradição, a imagem, a poesia — até que o esgar varonil se esvaeça, na desmedida lhanura, em mera sombra ou matiz.


[1] “Pampa: / A área de um pátio colorido basta / para te sentir minha. / […] Pampa sofrida e forte que já estás nos céus. / Não sei se és a morte. / Sei que estás no meu peito.” (Tradução nossa.)

[2] “[À] minha cidade que se abre clara como uma pampa, / voltei das velhas terras antigas do Ocidente”. (Tradução nossa.)

[3] “Isso que o cercava, a metralha /isso que vê, a pampa desmedida, / foi o que viu e ouviu toda a vida.” (Tradução nossa.)

[4] “Vejo o gaúcho atravessando as planícies, vejo o incomparável cavaleiro / com o seu laço no braço, / Vejo nos pampas a perseguição de gado bravo por causa das peles.” (Tradução extraída de Folhas de Erva, de Walt Whitman, edição da Relógio d’Água, 2010.)

Sugerir correcção
Ler 1 comentários