Lei do direito ao esquecimento entrou em vigor mas não está a ser aplicada por todos

Documento entrou em vigor a 1 de Janeiro deste ano, mas ainda falta acordo que lei prevê e que estabelece as definições concretas de vários parâmetros.

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O alerta partiu, esta quarta-feira, da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP) Nuno Ferreira Santos

A lei que prevê que pessoas com algumas patologias deixem de ser discriminadas no acesso, por exemplo, a créditos bancários ou na realização de seguros, está em vigor, mas ainda não está a ser aplicada por todos. Conhecida como a Lei do Direito ao Esquecimento, o documento entrou em vigor a 1 de Janeiro deste ano, tal como previsto, mas o acordo que deverá definir pontos considerados fundamentais à sua aplicação ainda nem começou a ser discutido. Como resultado disso, a discriminação a que se pretendia pôr fim ainda continua.

O alerta partiu, esta quarta-feira, da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP) que, em comunicado, refere que a lei “não está a ser aplicada” e que tem recebido pedidos de ajuda de pessoas que se queixam de “agravamentos sucessivos do prémio do seguro de vida, chegando a 300% de aumento, seguradoras a afirmar que a diabetes não está incluída na legislação ou o retirar da incapacidade por invalidez das condições contratuais”.

Os doentes com diabetes, cancro, hepatite C ou portadores de VIH foram precisamente os quatro casos apresentados, durante a discussão da proposta de lei, como sendo abrangidos pela nova legislação. Mas o documento não especifica quais as doenças a que se refere, quando consagra “o direito ao esquecimento a pessoas que tenham superado ou mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência, melhorando o seu acesso ao crédito e a contratos de seguro”. E tem apenas referências consideradas “gerais”, por algumas entidades envolvidas, no que se refere aos prazos a partir dos quais “nenhuma informação de saúde relativa à situação de risco agravado de saúde ou de deficiência pode ser recolhida pelas instituições de crédito ou seguradores em contexto pré-contratual”.

Estes e outros pontos deverão ser definidos num “acordo nacional de acesso ao crédito e a seguros”, previsto no documento legal, mas que ainda não começou a ser discutido. E a falta desse documento, com as definições concretas de vários parâmetros a serem considerados, está a permitir que as situações de discriminação continuem, como diz ao PÚBLICO José Manuel Boavida, presidente da APDP. “Faltam vários instrumentos à lei e isso foi logo dito desde o início. Isto não quer dizer que não haja companhias de seguros que estejam a ser mais sensíveis e outras que estão a aceitar rever a sua posição, mas também há as que dizem que não aceitam [não agravar ou negar o acesso ao seguro], com o argumento de que a diabetes não está na lei e que precisam de mais definição do documento”. Em consequência disto, diz, a associação continua a receber “duas a três queixas por semana” relacionadas com discriminação no acesso aos seguros e a empréstimos bancários.

Indefinições por resolver

Na Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, que desde o primeiro momento acompanhou o desenvolvimento do projecto de lei apresentado pelo deputado socialista Miguel Costa Matos, não há queixas de discriminação nesta matéria, desde a entrada em vigor da lei, mas há o reconhecimento de problemas que é preciso resolver. “Não recebemos qualquer reclamação, mas estamos conscientes que, apesar de ter havido um avanço nesta matéria, a lei deixou algumas indefinições que levam a que, com muita frequência, possam acontecer situações em que as seguradoras não celebrem os seguros”, diz Margarida Cruz, directora-geral da instituição.

Para sistematizar essas “indefinições” a Acreditar pediu um parecer jurídico, que deverá ser enviado nos próximos dias às forças políticas representadas na Assembleia da República, e que refere, por exemplo, que o acordo previsto na lei deveria ser menos “genérico” e estabelecer aspectos fundamentais como quem irá coordenar a mediação entre as seguradoras, bancos e representantes das pessoas com direito ao esquecimento (que devem participar na elaboração do acordo) e em que prazos é que tudo isto deverá ser feito. “Quando a lei deixa alguns dos aspectos fundamentais à sua aplicação condicionado à existência de um acordo e não estabelece quem o supervisiona, o que deve conter em concreto, quem espoleta essas negociações, achamos que é uma situação muito vaga, que é condicionante da aplicação da própria lei”, diz Margarida Cruz.

Reeleito como deputado para a nova legislatura, Miguel Costa Matos defende que a lei está em vigor e “não precisa de qualquer regulamentação para estar operacional”, mas reconhece que o facto de o acordo que o próprio documento legal prevê não existir ainda, pode estar a dificultar o processo. “É natural que algumas operadoras entendam que não está definido a 100% quais é que são as patologias abrangidas e o modo como isto se aplica, mas já deveriam estar a aplicar a lei que está em vigor. O que apelo a que cumpram com a responsabilidade legal e moral de não discriminarem estas pessoas e também faço um apelo aos cidadãos para que denunciem estes casos. Estamos empenhados em nos ocupar de forma próxima deste processo, para que decorra com a maior celeridade possível”, diz.

O facto de ter havido eleições legislativas e o atraso na tomada de posse do novo Governo, que só aconteceu a 30 de Março, atrasou o processo e levou também as associações a fazerem um compasso de espera, antes de exigirem que o mesmo seja retomado. “Chegou a altura de dizermos que as coisas não podem ser assim, porque não foi isto que foi prometido às pessoas com doenças crónicas e diabetes”, diz José Manuel Boavida.

Para este responsável, o problema começa desde logo com a exigência de as pessoas fazerem um seguro de saúde para pedir um empréstimo bancário para a compra de casa - algo que, diz, os bancos exigem mas a lei não - e também com o facto de algumas seguradoras estarem a aplicar tabelas de esperança de vida dos doentes com diabetes “completamente desactualizadas e que não têm nada que ver com a realidade actual”. O responsável da APDP espera esclarecer estes pontos com a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, a quem diz ter pedido uma reunião “há três semanas”.
Aos doentes com diabetes que possam enfrentar alguma situação de discriminação no acesso a um seguro ou empréstimo deixa um conselho: “Que apresentem um atestado médico que comprove terem decorrido dois anos de protocolo terapêutico de forma ininterrupta e eficaz. É isso que está na lei e isto é suficiente.”

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