Pode uma vacina evitar milhares de cancros?

As vacinas, ao darem protecção eficaz e duradoura contra agentes infecciosos, constituem o pilar da prevenção e permitem-nos olhar para o futuro com mais tranquilidade e esperança. Esta é a Semana Mundial da Imunização.

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A cada dois minutos morre uma mulher no mundo por cancro do colo do útero Rui Gaudencio/Arquivo

“— Mãe, o que é o cancro do colo do útero?

— Bem, filha, era uma doença terrível que matava muitas mulheres em todo o mundo quando tu ainda não eras nascida, mas que já não existe…”

Este é um dos sonhos da humanidade: erradicar doenças, fazê-las desaparecer para sempre.

Infelizmente, nem todas as doenças têm uma causa conhecida ou um vírus ou bactéria que possam ser combatidos de forma eficaz. Os avanços na área da Medicina ao longo dos últimos cem anos têm sido notáveis e dispomos hoje de armas que nos permitem acreditar que podemos ganhar todas as batalhas contra todas as doenças. Como vimos recentemente com a pandemia de covid-19, é errado achar que a natureza dá tréguas, que não existem novos desafios todos os dias, que podemos baixar a guarda — lendo o que acabei de escrever denoto um certo tom bélico no meu discurso, mas a verdade é que os dois últimos anos e, ironicamente, o tempo presente, têm sido uma guerra capaz de minar e moldar a forma como pensamos e comunicamos.

Na história da Medicina, independentemente do que possam dizer os defensores das teorias da conspiração ou os crentes num bem ou mal superior que controla o nosso destino, as vacinas foram o ponto de viragem que permitiu ao Homem sobreviver, em grande escala, a doenças capazes de arrasar países e civilizações inteiras. A erradicação da varíola, declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1960 — até à data a única vitória absoluta do Homem na luta contra as doenças infecciosas —, veio trazer esperança e incentivo a todos os que se dedicam a tratar e curar seres vivos. A erradicação das doenças é a maior das conquistas da Medicina, humana ou veterinária. As vacinas, ao darem protecção eficaz e duradoura contra agentes infecciosos, constituem o pilar da prevenção e permitem-nos olhar para o futuro com mais tranquilidade e esperança.

Mas é possível erradicar um cancro? A ideia de que o cancro é uma doença dos genes e não se consegue evitar com uma vacina está errada! Existem cancros que se podem prevenir e, em alguns casos, basta que o principal causador seja um vírus, de preferência bem conhecido, e que esteja presente em praticamente 100 % de todos os casos. Apresento-vos o HPV, o vírus do papiloma humano. Na realidade tenho esperança de que todos, ou quase, já o conheçam ou tenham, pelo menos, ouvido falar dele. Sim, o vírus normalmente associado ao cancro do colo do útero, embora não se limite a causar apenas este tipo de cancro, mas também cancro da vulva, da vagina, do ânus, do pénis e da orofaringe, além das perturbadoras verrugas genitais. Isto quer dizer que o HPV não afecta só mulheres, mas qualquer pessoa, independentemente do género. Assim, é fácil perceber que os cancros causados pelo HPV sejam o protótipo dos cancros passíveis de erradicar com uma vacina.

A verdade é que o maior flagelo do HPV é mesmo o cancro do colo do útero. A cada dois minutos morre uma mulher no mundo por cancro do colo do útero. É só fazer as contas. A partir do momento em que se conseguiu provar, de forma inequívoca, a relação entre o HPV e o cancro do colo do útero, foi possível desenvolver uma vacina contra os tipos de HPV mais frequentemente implicados. À medida que se foi conhecendo mais sobre o vírus e a sua forma de actuar, foi-se percebendo toda a extensão e aplicação da vacinação, para lá do cancro do colo. Está cientificamente provada a redução do cancro do colo associada à vacinação (até há relativamente pouco tempo só tínhamos dados indirectos, mas que formaram a base para a vacinação generalizada).

Portugal dispõe actualmente de duas vacinas contra o HPV sendo que, desde 2008, o Plano Nacional de Vacinação (PNV) oferece, de forma gratuita, a vacina a todas as raparigas até aos 17 anos (ou até aos 27 desde que tenham feito a primeira toma até aos 17 anos) bem como, desde Outubro de 2020, também aos rapazes com dez anos.

Dito isto, é importante salientar que a vacinação não é só para os jovens! A vacinação a título individual é eficaz na redução da infecção por HPV, pelo menos, até aos 45 anos (a maioria dos estudos clínicos incluiu participantes apenas até esta idade), mas a verdade é que a vacinação contra o HPV não tem um limite superior e cabe a cada pessoa avaliar se quer, ou não, fazê-lo.

Se os objectivos da OMS para a implementação de uma estratégia global até 2030 (baseada na vacinação, no rastreio e no tratamento) forem bem-sucedidos, a conversa inicial da menina com a mãe terá lugar em 2100 — 70 longos anos, especialmente se compararmos com a campanha de erradicação da varíola que levou 14 anos. Ainda assim, em Portugal, onde temos uma das taxas vacinais contra o HPV mais elevadas do mundo, provavelmente será antes disso, fruto de todos os que acreditam nas vacinas, nos que as recomendam e acima de tudo, de todos os que as fazem, confiantes na Ciência e na Medicina.


Assistente Graduada de Ginecologia e Obstetrícia no Centro Hospitalar de Lisboa Central - Maternidade Dr. Alfredo da Costa e Coordenadora de Ginecologia na Clínica CUF Belém, em Lisboa.

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