Abril ainda não tem rosto de mulher

É preciso uma mudança de paradigma e, acima de tudo, que as políticas públicas sejam efetivamente promotoras da igualdade de género, incluindo no que respeita a quotas e incentivos sociais e económicos para boas práticas, como a igualdade da licença parental e uma efetiva aplicação da lei.

O país conta, ao dia de hoje, com mais um mês e um dia de democracia do que de ditadura. Este é um marco que todos os dias devemos saber reconhecer, mas, sobretudo, renovar os valores de abril. Muito mudou e nos distancia daquela madrugada em que vimos ser derrubada a ditadura do Estado Novo, para dar espaço à implantação da democracia.

Apesar de diversas conquistas, numa geração, o fosso da desigualdade de género aumentou de 99,5 anos para 135,6 anos! Um fosso de desigualdade que continua a vedar às mulheres o acesso a iguais oportunidades nas esferas pessoal e profissional.

Abril afastou-nos do tempo em que ao marido cabia o papel de “chefe de família”, o direito de abrir a correspondência e de autorizar a mulher a ter passaporte ou sair do país, ao passo que à mulher era acometida a responsabilidade pela vida doméstica. Com Abril, a mulher passou a poder trabalhar fora de casa sem ter de pedir licença ao marido e há hoje uma maior repartição das tarefas domésticas entre homem e mulher.

Contudo, a pandemia por covid-19 mostrou-nos quão frágeis podem ser estas conquistas. Quando a crise sanitária se abateu sobre nós, o emprego das mulheres foi reduzido em 2,2 milhões em toda a UE. Foi também sobre a maioria das mulheres que recaiu o ter de ficar em casa e o aumento da pressão sobre o equilíbrio trabalho-vida e da percentagem de trabalho não remunerado.

Antes de Abril, só uma em cada quatro mulheres sabia ler e não podiam ser (ou aspirar a ser) diplomatas, juízas, militares ou polícias e ganhavam menos 40% que os homens. Abril trouxe o direito ao ensino sem discriminação de género, ao salário mínimo, ao voto, a abrir uma empresa sem a autorização do marido. Mostrou-nos que podemos ser CEO's de uma empresa, dirigentes da administração pública, secretárias de Estado, ministras ou até primeiras-ministras.

Mas será que é mesmo assim? Apenas três em cada dez membros dos conselhos de direção em grandes empresas europeias são mulheres, há menos mulheres entre os executivos seniores, seria necessário mais de duas décadas para alcançar uma tomada de decisão equilibrada em matéria de género nos bancos centrais e as mulheres continuam subrepresentadas nas instituições financeiras europeias. E, no que à política respeita, nunca tivemos uma mulher como Presidente da República em Portugal e, em pleno século XXI, os principais cargos do país continuam a ter rosto masculino: temos um Presidente da República, um primeiro-ministro, um presidente da Assembleia da República e um presidente da câmara da capital do país! Nas últimas legislativas, o número de mulheres na Assembleia da República voltou a diminuir. Em 230 deputados, apenas 84 são mulheres, menos duas do que em 2019.

Se é verdade que com Abril terminou também a ‘ditadura’ que proibia as mulheres de usar maquilhagem e que fixava oficialmente a altura das saias, a mulher ainda hoje é alvo de considerações sobre se usa uma mini-saia ou um decote, sujeita a comentários sexistas e comportamentos de assédio. Abril não trouxe (ainda!) o reconhecimento do assédio como crime e, por isso, às mulheres tem restado ‘ouvir e calar’, algo que, no local de trabalho, na universidade, num bar ou numa rede social não pode continuar a ser socialmente normalizado e encontra no código penal apenas um eufemismo: a “importunação sexual”.

Antes de Abril, o Código Penal dava, na prática, o direito ao marido de matar a mulher em caso de flagrante adultério e previa a figura do depósito de mulher casada, que fazia com que uma mulher violentada que fugisse do marido lhe fosse devolvida pela polícia e pelos oficiais de justiça. Com Abril, a democracia reconheceu o divórcio ou a punição penal do crime de violência doméstica. Todavia, os valores de Abril ainda estão feridos na sua essência quando a cada dia são registados em média 54 casos de violência doméstica e nos vemos a braços com uma justiça nem sempre célere e demasiadas vezes marcada por um machismo tóxico e por uma reiterada desculpabilização do agressor.

É preciso uma mudança de paradigma, seja ao nível da formação, da sensibilização, mas acima de tudo que as políticas públicas sejam efetivamente promotoras da igualdade de género, incluindo no que respeita a quotas e incentivos sociais e económicos para boas práticas, como a igualdade da licença parental e uma efetiva aplicação da lei.

E antes que a tão propalada meritocracia venha a debate, recordo que a mesma esbarra no fosso da desigualdade que teima em persistir e que não permite que as mulheres tenham oportunidades iguais! Que tenham simplesmente o mesmo ponto de partida que os homens, que possam decidir sobre o seu corpo ou viver sem violência.

São 48 anos de democracia, mas Abril ainda não tem rosto de mulher.

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