A revolução que veio para ficar

Que impacto poderão ter quer as denúncias de assédio, lá fora, quer os polémicos acórdãos dos últimos meses, relacionados com violência doméstica, cá dentro? Tem o sexismo os dias contados?

Em 1971, Susan Griffin cunhou o termo cultura da violação com a intenção de denunciar não só a violência sexual bruta contra as mulheres, mas igualmente as formas subtis de assédio e o carácter insidioso do sexismo como elemento central da arquitetura histórica da desigualdade de género. Na emergência dos movimentos feministas e pelos direitos das mulheres, a violência foi sempre uma palavra-chave, não obstante as lutas travadas para definir e compreender os contornos dessa mesma violência. Uma conclusão era clara, contudo. A construção do poder dos homens, denunciado mais recentemente como masculinidade tóxica por inúmeros movimentos, dependeu e depende ainda da subalternidade feminina, instituída numa figura passiva, infantilizada, dependente e sexualmente objectificada, capaz de aceitar a inevitabilidade da própria dominação.

Décadas de luta pela igualdade das mulheres e a emancipação do feminino não deixaram incólumes estes arquétipos civilizacionais, anunciando novos ideais alicerçados na quota de autonomia e capacidade de autossuficiência que a ideologia liberal ocidental construiu, com primazia ideológica do individualismo e a ilusão da igualdade de oportunidades. Assim se ofuscou, demasiadas vezes, a organização estrutural das desigualdades, remetendo o género e a sua ordem injusta para os méritos e as culpas de cada mulher, de cada homem, de cada pessoa humana. Paralelamente, imaginou-se a indignidade dos outros — minorias étnicas e religiosas — longe do mundo ocidental já, supostamente, quase vazio dos velhos poderes patriarcais e dos privilégios masculinos. Neste mundo imaginário, onde as lutas feministas eram também elas história passada, a culpa facilmente recaia nas vítimas, isentando os algozes. Se mal sucedia era por doença e psicopatologia, justificando a agressão à luz da desculpabilização médica de um sem número de adições, entre as quais as do sexo ou da violência causada por trauma ou mesmo impressa nos genes quiméricos adquiridos por sorteio da natureza. Uma vitória recente contra esta tendência residiu precisamente na retirada em 2013 da chamada desordem de comportamento híper-sexual do Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-5) publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, depois de inúmeras pressões de movimentos pelos direitos das vítimas de agressão, enfatizando que a violação, o assédio, a violência doméstica e íntima não podem ser apenas mais uma síndroma carregada sem culpas ou culpados. As evidências eram afinal gritantes. Segundo dados da Agência dos Direitos Fundamentais, na União Europeia mais de metade das mulheres (55%) continuam a ser vítimas de assédio sexual, número que, surpreendentemente, sobe para três quartos (75%) nos grupos de mulheres com profissões mais qualificadas. Um terço experimentou abusos físicos por parte de um parceiro íntimo e uma em 20 foi violada. No mundo, a cada minuto, 77 mulheres são vítimas de violência sexual contra apenas dez homens.

Na segunda década do século XXI, iniciava-se assim um movimento de retorno às origens sociais e históricas da desigualdade retomando lutas de género que, encabeçadas por mulheres e minorias de género, ganhariam destaque. Não que tivessem desaparecido. Não, de todo. Mas era menor a sua visibilidade, algo escondida sob leis e diretivas nacionais, europeias e internacionais elaboradas por especialistas e movimentos sociais, mas com pouca divulgação para as massas. O ano de 2017 foi neste sentido exemplar, com os dois lados da mesma moeda unidos no prenúncio de novas resistências, de novos movimentos pela justiça de género, com o protagonismo feito no feminino e, claro, com as verdadeiras ideologias da desigualdade de género a saírem dos armários onde se albergava o machismo ainda imperante e incapaz de punir devidamente, através de dispositivos institucionais mais impermeáveis a interpretações conservadoras, atos de agressão, assédio e violência.

Em Portugal, destacou-se a crítica aos estereótipos que grassam no sistema judiciário, ainda sem vergonha de recorrer ao arquétipo da mulher adúltera, à culpabilização individualista das mulheres com maior autonomia ou das que se ‘põem a jeito’. Lá fora, noutra escala, o movimento feminista ‘Eu, também!’, surgido das queixas massivas contra o produtor cinematográfico Harvey Weinstein, trouxe de Hollywood muito mais do que blockbusters. Mulheres com visibilidade pública não hesitaram em denunciar. Tal como no caso Bárbara Guimarães, para além dos tribunais, ganhou-se em exemplaridade, derrubando muros de vergonha, reconhecendo a cultura de abuso ainda prevalecente. Da América de Trump chegaram ingredientes importantes para o futuro, com as divisões que se impõem entre a defesa do status quo e o conservadorismo e as rebeliões de que renascem muitos coletivos e alianças progressistas. Se o sexismo e a violência não vão acabar para o ano, alterou-se estrategicamente a forma de luta contra as desigualdades de género. Mesmo com recuos e turbulências, o retorno ao coletivo e ao reconhecimento dos males da subalternidade — como nas mulheres — são já uma revolução. E essa, ainda que de futuro incerto, veio para ficar.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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