Sem alternativa

Nenhum de nós duvida da inteligência de Volodimir Zelensky e até da sua bondade, saturada de espírito nacional, e da sua enorme capacidade retórica, mas a escolha que impôs ao povo ucraniano foi, definitivamente, entre a vitória e a derrota.

A redução do conflito que lavra na Ucrânia a ser-se pró ou anti-Rússia é detestável e obedece a estados de espírito perversos e a uma linha de pensamento imatura e maniqueísta. Impõe-se como uma impossibilidade de chegar a um compromisso, mesmo que doloroso, de optar pelo máximo de soluções mentais, rejeitando a escolha redutora entre a imperfeição da vida malfadada e a perfeição da morte gloriosa. Tivesse eu o modo e o tempo, e levaria o resto da minha vida a desconstruir ideias deste género, usadas de uma maneira conscientemente desonesta.

Não são menos do que abusivas as pessoas e as ideias que nos obrigam a optar pelos extremos, a definirmo-nos no centro da dicotomia “tudo ou nada”, a engrandecermo-nos ou aviltarmo-nos no que nos resta da escolha para a qual nos empurram. Para imensa gente, a dialéctica é uma obscenidade e um sinal de hipocrisia. Usar expressões como “por outro lado” ou “ainda que”, que reforçam a ambivalência e a assunção da complexidade dos assuntos, é tido como uma conspiração de silêncio e uma fraqueza. Há, cada vez mais, pessoas com tanta pressa em exibir a sua inteligência e genialidade que não pensam. Porque o exercício do pensamento, por mais que se queira dócil, não admite censura às contradições em que ele se formula. As ideias ficam quase sempre destapadas.

A peculiaridade das democracias ocidentais é a de, sem correrem o risco de se questionarem, estabelecerem dogmas pelos quais formalizam regras de subtil obediência absoluta. Além disso, autoproclamam-se infalíveis no interior do seu enquadramento mental fixo. Infalíveis em relação aos outros, evidentemente. Para que a liberdade de pensamento possa sobreviver dentro delas é necessário defender de violentos ataques o conceito de verdade objectiva. É dela que o pensamento dogmático tem receio. E, a propósito disso, a guerra a que temos assistido tem tantos contornos que é quase impossível não proferir um disparate ou uma imprudência. Mas o pensamento doutrinário que nos cerca reduz os disparates a meros lapsos ou dissimula-os.

Posso não ter provas irrefutáveis, mas é minha convicção a de que Vladimir Putin e o seu regime são criminosos. Creio não ter dúvidas de que a doutrina do Presidente da Federação Russa gira em torno da mitificação de um passado imperial e da sua perpetuação num futuro glorioso. Enquanto isso, lega-nos um presente terrífico e decepcionante, em especial se não se for russo. Putin é também um indivíduo sem imaginação: se a tivesse, não usaria a brutalidade para ofender um povo soberano. Além disso, não parece ter tido em conta que parte do seu povo, milhares de jovens soldados e suas famílias, foi deixada sem alternativa. Ainda assim, tem de se admitir, e a atestar pelas entrevistas dadas, é um homem inteligente e dotado de algum humor, o que o torna, aos nossos olhos, ainda menos recomendável, inspirando contra si uma redobrada cólera.

Queremos sempre que os “maus” sejam maus em toda a linha, mas a vida reserva-nos surpresas. Se nos assegurarmos um último esforço mental, concluiremos que é inútil criar imagens estereotipadas do chefe de Estado russo. É a imprecisão das expressões prefabricadas que o Ocidente atribui a Putin que mistura alguma razão com desonestidade. Para sermos francos, pensemos de forma simples: do lado dos “bons” nem sempre estão os bons. Tomemos como “bons” aqueles que apoiam, por exemplo, um clube ou uma selecção nacional de uma determinada modalidade desportiva: é ingrato pensar que entre os apoiantes, entre aqueles que cantam connosco um uníssono hino, há neonazis, pederastas ou criminosos. Mas isso faz parte das contingências sociais.

Nenhum de nós duvida da inteligência de Volodimir Zelensky e até da sua bondade, saturada de espírito nacional, e da sua enorme capacidade retórica, mas a escolha que impôs ao povo ucraniano foi, definitivamente, entre a vitória e a derrota, sem esquecer que a vitória da Ucrânia (a sua soberania, a entrada na União Europeia, o corte definitivo com a Rússia e a proximidade à NATO) tem um preço elevadíssimo. Não parece ter dado qualquer alternativa aos ucranianos de tentarem a via da negociação, ainda que sob o signo de uma capitulação transitória, sem massacre, sem êxodo, sem destruição e tragédia.

No seu discurso, no parlamento português, usou de novo a retórica propagandística, a que tem de facto direito, para diabolizar a Rússia e denunciar os seus crimes, agora em Mariupol – isso é importante, mas não suficiente. Esperemos, em defesa da sua imaculada imagem, que forças ucranianas não tenham atentado contra os próprios, como alguém afirma. Ficaram os lugares vazios do PCP que, já o disse, faria o mesmo a Putin. Talvez poucos saibam, mas ser-se comunista na Ucrânia é sinónimo de pertencer a um partido político ilegalizado pelo regime e, com grande probabilidade, um salvo-conduto para se ser perseguido. Talvez assim seja possível dar o benefício da dúvida a esse partido, tão odiado agora no quadro político português.

Mariupol, cidade que desconhecíamos antes desta guerra (de resto, temos comentadores e jornalistas muito versados em dados geográficos da Ucrânia), tem sido usada pela propaganda russa, como é possível ver no canal russo 1tv.live, com a força esmagadora das imagens da destruição de prédios e habitações, com a mesma incursão jornalística emocional da CNN e dos canais ocidentais, com o mesmo modelo de relato de vítimas idosas e de crianças que, neste caso, se queixam da maldade dos ucranianos. As duas propagandas, numa competição feroz pela desinformação. E, no entanto, as populações permanecem sem alternativa.

Não será Putin que nos fará desamar Shostakovich ou Tolstói, nem Zelensky que nos impedirá de amar Mykola Lysenko (ouçam a sua “Valsa da Separação”, tão a propósito), como Estaline não obliterou Stravinsky ou Prokofiev, nem Hitler suprimiu um átomo a Beethoven, apesar da instrumentalização. Os estadistas têm algo em comum: pensam muito pouco nas pessoas e nas suas escolhas e impedem a obtenção de consensos, a não ser aqueles que convêm e produzem no seu mundo ideal. Limitam-se a olhar para mapas, fronteiras, territórios, avanços tecnológicos, feitos bélicos, façanhas épicas, e têm um fascínio especial pela marca que hão-de deixar, como a maioria dos fanáticos. Mas de pessoas – aquela gente que todos os dias se levanta, usando a sua liberdade para fazer escolhas – não sabem quase nada. Agora, porém, vê-se que há imensa gente com pretensão a estadista, frívola e vaidosa, a querer impedir a obtenção de consensos e deixar, sem escrúpulo, o outro sem alternativa. É uma tentação. Há mesmo demasiada gente assim. A menos que muito me engane.

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