O Verão Irlandês

A leitora Nair Alexandra transporta-nos no tempo, para evocar uma viagem com quase três décadas, numa Irlanda muito diferente da actual.

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Nair Alexandra DR

Era Verão e havia um belo sol, improvável naquele destino, apesar da época. O destino era a bela, a verde, a nevoenta Irlanda. O país que nesse ano de 1995 celebrava o Estio mais soalheiro de década e meia cumpria, ainda, o início de uma efeméride negra: 150 anos da Grande Fome de 1845-49. Mas naquele fim de Agosto e início de Setembro discutia-se, ainda, a legalização do divórcio em terras irlandesas, esquadrinhadas por muros de pedra calcária cor de cinza e pontuadas por cruzes católicas – isto para espanto de quem vinha de outro país europeu de fortes tradições romanas, mas onde o direito ao divórcio era lei mais do que aceite para os casamentos católicos, desde 1975, graças a uma revolução – ou seja, vinte anos antes. Porque a viajante não sabia o peso que a propriedade tinha nestas questões, no país de Joyce e de Yeats.

Eu era, na altura, jornalista no JL, e, mesmo quase em começo de profissão, os olhos e os ouvidos desdobravam-se, atentos, a todos os sinais. Cheguei feliz, a Dublin. Era flagrante a semelhança com Londres, na arquitectura, dolorosa a comparação com Lisboa, na quantidade de livrarias. Em cada uma não faltavam livros de História, tantos sobre o tema dominante: a Irlanda antes da Fome; a Irlanda Durante a Fome; a Irlanda Depois da Fome; a Demografia e a Fome; a Sociedade e a Fome – só em 1997 viria a ser inaugurado o grupo escultórico, da autoria de Rowan Gillespie, em homenagem às vítimas da tragédia, no Cais da Alfândega da cidade. Além das livrarias, muitas flores, entre bares e lojas da O’Connell Street. O’Connell, e não O’Connor Street, como me apetecia vozear para a televisão quando ouvia portugueses a falarem de Dublin.

Explorava eu a capital, a passo estugado, visita guiada a pé, ainda Lisboa mal adivinhava esta modalidade, dizia, a passo estugado, mas eu não conseguia correr à velocidade atlética de uma japonesa com quem acamaradava num momento, que me entusiasmara na tal visita e que me chamara a atenção para o nosso atraso. Era alta, corria bem e garantiu o meu lugar, quando eu, esbaforida e vermelha, seguindo-lhe a peugada, cheguei minutos mais tarde.

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No percurso, feito por um excelente guia, vi vários monumentos da capital, incluindo o Trinity College, onde mais tarde os meus olhos deslumbrados iriam pousar no Livro de Kells. E de Dubin para Galway, entre as histórias da repressão do Império Britânico, as discussões sobre o divórcio nas televisões e nos jornais e as memórias da fome terrível iniciada em 1845. E entre rebanhos gordinhos, pradarias verdes e corvos de penas sedosas cheguei a Inishmore (ou Inis Mór), a maior das Ilhas Aran. E cruzei o Sul, em direcção à cidade universitária de Cork, pernoitando no Parque Nacional de Killarney, ou percorrendo o Anel de Kerry, as falésias de Moher. Sem ter bebido Guinness, e, céus, sem ter andado em «bicicletas celtas», fugindo, a correr, dos clichés. Sem, no entanto, deixar de perseguir memórias cinéfilas: A Filha de Ryan, de David Lean, ou O Homem Tranquilo, de John Ford. Sempre à conquista do Oeste, trocando ideias com uma belga da minha idade, grande companheira de viagem.

Não me lembro bem porquê a escolha da Irlanda, em 95. Sei que o Nobel da Literatura, atribuído a Seamus Heaney, nesse ano, reportagens da Time e coincidências fortes em escolhas musicais levaram-me a pensar que fui parar ao centro da Terra.

Nair Alexandra

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