Crescer a duas velocidades

Com esse culto do desempenho, coloca-se as crianças, demasiado cedo, em situação de competição, que valoriza a performance, antes de o processo de desenvolvimento estar suficientemente consolidado.

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PAULO PIMENTA/Arquivo

Ouvi dizer que os antigos designavam por anima a unidade constituída pelo corpo, a mente e o coração. Mas esta não era apenas uma palavra escolhida para nomear uma entidade tripartida: mais do que isso, o vocábulo apontava para o equilíbrio entre os três constituintes de uma entidade única. A anima era assim como uma espécie de Pangea do ser humano, única, indivisível e harmoniosa.

Não me custa acreditar que os antigos, com a sua sabedoria, tivessem encontrado uma palavra para denominar uma entidade que, na sua essência, deveria ser indissociável. Ou então sou eu que procuro e encontro uma grande verdade nesta ideia com contornos poéticos que, para mim, constitui uma parábola acerca do significado mais profundo do desenvolvimento humano, mediado pela educação.

A este processo que visa o equilíbrio entre as partes poderíamos dar o nome de “homeostasia”, palavra que António Damásio tanto valoriza na obra A estranha ordem das coisas. Mas, para o fazermos, importa recuperar o significado atribuído por este neurocientista ao conceito de homeostasia que, de acordo com a sua visão, não se limita apenas a manter o equilíbrio. Mais do que manter o equilíbrio, é necessário aquilo que denomina como “florescimento”, ou seja, a capacidade de se projetar no futuro.

A homeostasia pode ser quebrada quando uma das partes se sobrepõe às restantes, introduzindo um desequilíbrio nesta equação assente num equilíbrio por natureza precário. É o que acontece atualmente com a hipervalorização da componente cognitiva (embora, muitas vezes, teoricamente se defenda o contrário), comparativamente com as dimensões emocionais e comportamentais do desenvolvimento infantil.

Seja por serem alvo de grandes expetativas, seja por fazerem parte de uma sociedade repleta de estímulos — ou por ambas as circunstâncias —, as crianças são precocemente hiperestimuladas do ponto de vista cognitivo, com o objetivo de conseguir um bom desempenho, que lhes sirva de rampa de lançamento para um futuro supostamente promissor. Com esse culto do desempenho, coloca-se as crianças, demasiado cedo, em situação de competição, que valoriza a performance, antes de o processo de desenvolvimento estar suficientemente consolidado.

Este permanente confronto com uma fasquia demasiado alta, na qual há pouco espaço para falhar, ou apenas para não ser suficientemente bom, acaba por fragilizar as crianças e por introduzir ansiedade numa idade em que seria suposto estar livre deste tipo de pressão. Induz, também, comportamentos contrários à cooperação e inibe o desenvolvimento da empatia, qualidades tão necessárias para o desenvolvimento emocional.

Este comprometimento do desenvolvimento a nível emocional origina uma desarmonia que chega a ser desconcertante: crianças com um bom potencial intelectual comportam-se, do ponto de vista emocional, como crianças pequenas, com atitudes desajustadas para a idade, com chamadas de atenção constantes, birras despropositadas, choros frequentes, amuos sempre que são contrariadas, além de uma baixa tolerância à frustração.

A falta de literacia emocional tem implicações nas relações destas crianças com os seus pares, dificultando a capacidade de se colocar no lugar do outro, de fazer cedências, de escutar o que o amigo tem para dizer, de partilhar os brinquedos, de seguir regras e de dividir o protagonismo nas brincadeiras. A ausência destas competências é responsável por problemas a nível social que podem contribuir para que estas crianças tenham uma relação conflituosa com os colegas ou, ainda, para que se sintam isoladas dos demais.

Por outro lado, nesta época de baixa natalidade, as crianças são muito investidas, o que se traduz numa valorização da infância que, se for exagerada, pode conduzir a um prolongamento excessivo da mesma, com a perduração de hábitos como o uso da fralda ou da chucha até demasiado tarde. Com o pretexto de que cada criança tem o seu ritmo e que há-de evoluir a seu tempo, há alunos que, na idade de aprender a ler, acabaram praticamente de largar a chucha para dormir.

Também do ponto de vista comportamental, este desalinhamento é interpelador, quando vemos crianças que sabem tudo sobre galáxias longínquas, mas não conseguem realizar tarefas simples como calçar um par de sapatos; que conhecem de trás para a frente e da frente para trás os nomes de todos os dinossauros, mas não conseguem ir à casa de banho com autonomia; que utilizam com desenvoltura um smartphone, mas não são capazes de manusear os talheres com destreza.

A mensagem transmitida a estas crianças é, na sua essência, contraditória: é como se tivessem sido infantilizadas durante muito tempo e, de repente, tivessem de passar a ter comportamentos de crescidas para poderem ter sucesso nas aprendizagens. Esta contradição induz um crescimento a duas velocidades, como se as crianças fossem incentivadas a crescer do ponto de vista cognitivo, ao mesmo tempo que se assiste a um prolongamento da infância nas componentes emocionais e comportamentais.

Paradoxalmente, a excessiva valorização da componente cognitiva é responsável pela introdução de uma desarmonia no desenvolvimento das crianças, que não é tão pouco positiva para a componente supostamente privilegiada. É como se este desajustamento, em vez de lhes permitir andar para a frente, as “puxasse” para trás, impedindo-as, inclusivamente, de assumir atitudes facilitadoras da aprendizagem. Para crescerem e irem em frente, as crianças necessitam de homeostasia na sua anima, de modo a desenvolverem um todo harmonioso (também integrador de desequilíbrios), que contemple as componentes cognitiva, emocional e comportamental.

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