A alma das coisas

Há um vasto universo desconhecido entre o mundo físico e o reino das impressões impalpáveis no ar. Sentimo-lo, por exemplo, quando entramos numa casa há muito fechada, mas onde tudo permanece no exato lugar de quando era habitada.

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Margarita Khamidulina/Getty Images

Um sofá novo é um móvel hostil, um intruso sem história, carinho ou comodidade. Não nos conhece peso e formas do corpo, o jeito de sentar e de descansar a nuca no topo do encosto ou a feição da chávena que lhe pousamos no braço enquanto o café arrefece. O sofá novo ignora como nos estendemos e suspiramos, num breve cochilar, o cansaço no fim de um dia de trabalho ou como sorrimos de prazer, ainda com a roupa da noite, ou roupa nenhuma, com um livro no peito numa manhã preguiçosa de sábado. Desconhece-nos o rosto adormecido de boca entreaberta, respirando fundo, por vezes deixando escapar um ronco que arranca gargalhadas nas crianças, ansiosas por terem só para si o trampolim de onde podem saltar mais alto para o mergulho no mar de brinquedos espalhados pelo chão.

O conceito estende-se a qualquer móvel novo recém-comprado: por muito bem que se enquadre na decoração, um móvel novo é, e sê-lo-á durante um longo período, um corpo estranho à procura de entender a alma da casa, esse valiosíssimo baú sem fundo, guardião dos nascimentos e das mortes, dos renascimentos e reinvenções, dos abismos, afetos, lágrimas e alegrias, das confissões e mentiras, dos sucessos e insucessos, dos momentos surdos e mudos, dos passos, das vozes e melodias, das cantigas, dos gritos e gemidos, dos cheiros dos corpos, perfumes e cozinhados, do fumo da lareira e do cigarro e da passagem, mais ou menos indelével, de convidados que trazem sorrisos, flores, comidas e bebidas, regozijos e lamentos, e que partem deixando as suas vozes, os seus gestos, as suas formas de se sentarem, as suas verdades e máscaras. Leva tempo até que as coisas passem de espectadoras a residentes, até que ganhem alma e façam parte da alma da casa.

Permitam-me uma improvável comparação com o método de hidratar leguminosas, cereais ou sementes, utilizado para neutralizar o ácido fítico​, um componente de difícil digestão, tornando as proteínas, minerais e vitaminas desses alimentos mais digeríveis pelo nosso organismo. É possível hidratar as leguminosas, os cereais e sementes instantaneamente, forçando-os a beber ou injetando-lhes água com uma seringa? Claro que não. A solução, secular e conhecida de todos, passa por demolhá-los um mínimo de sete ou oito horas, aguardando que a água, lentamente, se infiltre neles. Processo semelhante acontece, ainda que de forma bastante mais demorada, com as coisas, que vão aos poucos ficando impregnadas pelos nossos usos e costumes e emoções, ou seja, por tudo aquilo que somos, tornando-se, aos poucos, parte de nós. E nós, parte delas. Assim o vejo e sinto.

Nem todas as coisas sobrevivem o tempo suficiente para adquirir alma. Há muito de descartável numa casa e nas nossas vidas. Uma marca dos nossos tempos, a descartabilidade (a palavra, que por momentos julguei ter inventado, é de uso corrente no Brasil). Descartabilidade das coisas, das pessoas, dos afetos, das relações. E assim se vai conspurcando o mundo de lixo e ressentimentos. “Certo, assim é, mas nada impede que algo descartável possa adquirir alma” — riposto para mim próprio (acontece amiúde). Tudo se resume ao significado que lhe é atribuído. Um copo de plástico partilhado com a pessoa amada pode, em segundos, transformar-se num objeto de culto, tão riquíssimo de significado quanto um brinquedo usado durante muito tempo na nossa infância.

A alma das coisas pode explicar-se, creio, pelo significado que lhes atribuímos através de associações, memórias, usufruto, presença no espaço que habitamos ou frequentamos, origem ou pertença — uma oferta de um amigo, de um familiar, de alguém que admiramos, de uma pessoa famosa — ou por contarem, por si só, uma história ou a história de pessoas ou instituições que os possuem ou possuíram, e cuja mera visualização desencadeia, tantas vezes, um arrepio, uma gargalhada ou uma lágrima de nostalgia. Quantos dos que leem este texto guardam, no fundo de uma gaveta, uma pedra recolhida num local especial? Ou escondem, prensada entre as páginas de um livro, uma pétala colhida no arrebatamento de uma paixão proibida?

Foi uma fotografia de uma família de refugiados ucranianos transportando uma seleção de coisas do presente e do passado em pequenas malas e uma outra imagem de uma fileira de prédios destruídos, compondo uma cordilheira de escombros, que me motivaram esta prosa. Logo que a ideia me ocorreu, associei-lhe o título do livro As Coisas Que Perdemos no Fogo, de Mariana Enriquez, jornalista e romancista argentina. Partilho convosco um trecho: “Apoiou-se na parede vazia, onde vários meses antes, ainda antes do nascimento, antes que a sua esposa se transformasse numa outra pessoa, tinha planeado pendurar um móbile, um universo que giraria por cima do berço do bebé para o entreter durante a noite. A lua, o sol, Júpiter, Marte e Saturno, os planetas e os satélites e as estrelas a brilharem na escuridão. Mas nunca o pendurara porque a esposa não queria que o bebé dormisse ali e não havia meio de a convencer. Tocou na parede e encontrou o prego, que continuava à espera.”

Há um vasto universo desconhecido entre o mundo físico e o reino das impressões impalpáveis no ar. Sentimo-lo, por exemplo, quando entramos numa casa há muito fechada, mas onde tudo permanece no exato lugar de quando era habitada. Numa ocasião em que tive a oportunidade de realizar essa viagem no tempo, respirei calmamente o ambiente e examinei sem rédeas e com respeito as coisas dos habitantes que há muito haviam partido. Gostei particularmente de tocar e vasculhar os livros, os mais eloquentes dos objetos, recheados de marcas de proveniência bibliográfica, notas espaciotemporais, referências bibliotecárias, dedicatórias, anotações, recados que viajam pelo tempo, recibos, notas de amor. Os livros usados têm alma, falam pelos cotovelos e proporcionam-nos a mirífica experiência de acariciar as mãos dos que os manusearam antes de nós.

Durante a Segunda Guerra Mundial, mais de dez milhões de livros (os estudiosos da matéria acreditam que tenham sido muitos mais, mas nunca se saberá o número exato) foram arrancados pelos nazis aos seus proprietários. Foi a eloquência dos livros a permitir que, nos anos que se seguiram ao fim da guerra, uma ínfima parte tenha sido restituída aos despojados. A larga maioria manteve-se órfã e foi confiada, e a sua alma preservada, a bibliotecas públicas.

A propósito da Segunda Guerra, relato de cor um caso verídico, representativo, creio eu, da alma das coisas:

A meio da noite, acordou com fortes pancadas na porta e gritos aflitos, presságios de morte. “Despacha-te! Eles vêm aí”. Levantou-se num pulo, expondo-se à noite gelada com os dentes a tiritar de frio e de medo. Vestiu o robe pousado na cama e enfiou os chinelos, cuja localização conhecia de cor. Sem acender o candeeiro, tateou o camiseiro e guardou duas coisas pequenas no bolso do robe. Depois, abriu a porta e correu até onde a chamavam. No dia seguinte, já a salvo num celeiro, deitou a mão ao bolso e observou, com os olhos inundados de lágrimas de ternura e saudade, os minúsculos sapatos azuis, que pouco uso tiveram nos pés do seu bebé. “O meu tesouro”, murmurou, aconchegando-os junto ao peito.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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