Pode o património ser “um atalho para a equidade”?

No usufruto do património podem ser aplicados preços diferenciados por idade, descontos para as comunidades locais, para o tornar mais acessível e inclusivo.

A frase que apresento entre aspas no título não é minha, mas sim, de Alejandro Aravena, o arquiteto chileno com quem tive a oportunidade de dialogar algumas vezes quando ambos trabalhávamos no campus de Lo Contador da Pontifícia Universidad Católica de Chile. Recordei-me agora da mesma ao lê-la no seu mais recente livro ¿Cómo vamos a vivir juntos? (Editorial Paídos, 2022). É certo que Aravena não utiliza esta frase para caraterizar o património, mas a cidade, dando-lhe um sentido transformador, uma capacidade – através do espaço público (aquele que é usufruído por todos) – de esbater as barreiras entre classes sociais tão evidentes no Chile. De acordo com arquiteto chileno, o modo como o espaço público é planificado pode modificar as mentalidades, atuar como uma forma de encurtar caminho (um atalho) para tornar a sociedade mais equitativa.

O património enquadra-se perfeitamente nesta dinâmica expressa pelo vencedor do prémio Pritzker de 2016. Faz parte do espaço público, estando presente sobre várias formas, através da monumentalidade histórica de certos edifícios, paisagens, objetos exibidos em museus e na memória que concebemos na relação com esses espaços. O modo como gerimos esse património pode assim servir, usando a expressão inicial, como um atalho para equidade, um meio para resolver alguns dos problemas que a sociedade contemporânea nos vai propondo e exigindo resolução, pois, tal como na planificação da cidade e do espaço público, a gestão do património implica também uma dimensão política e uma visão criativa em relação ao futuro.

A qualidade da experiência que obtemos na circulação por um parque, na visita gratuita a um museu, no modo como nos deslocamos por uma cidade, tem uma implicação direta na qualidade de vida, sem ter que depender diretamente do poder económico de cada um… Representa uma experiência que é distribuída equitativamente por todos. Essa deveria ser a linha fundadora de uma perspetiva futura, reconhecendo, claro, que a gratuidade integral do património é uma utopia. Podem, no entanto, ser concebidas políticas de modo a que o usufruto do mesmo se enquadre numa perspetiva de equidade, nomeadamente – e como já se faz em vários sítios – aplicando preços diferenciados por idade, descontos para as comunidades locais e tornar estes espaços mais acessíveis e inclusivos. Contudo, para que se possa efetivar uma maior sustentabilidade e melhor gestão do património é preciso ir mais além, aplicar na prática a Convenção de Faro (2005), criar um vínculo comunitário com o mesmo: torna-se necessário que as pessoas se identifiquem com o património e se sintam partícipes do processo de patrimonialização.

Esta perspetiva funda-se, acima de tudo, numa perceção cada vez mais abrangente das dinâmicas políticas e sociais do património que, sucintamente, podem ser definidas em três propósitos: o primeiro, de tipo epistemológico, no qual o património é entendido como conhecimento pré-existente; o segundo, de tipo metodológico, que vê no património uma estratégia para tornar produtiva a memória e, um terceiro, de tipo deontológico, onde o património surge como referência de uma parte importante dos consensos adquiridos em relação a um projeto futuro de sociedade. Torna-se assim fundamental que uma perspetiva contemporânea de pensar o património vá mais além dos objetos de um museu ou da estátua que domina uma praça de uma determinada cidade. Deve ser constituída por uma visão fluida entre a história, a geografia, as tradições e o diálogo geracional de um povo, só assim se aproxima as pessoas dos museus, dos monumentos e também da cultura.

Para isso, no caso português, é essencial que se constitua uma visão integral do património, evitando uma apropriação de recursos por parte de uma suposta “superioridade cultural” que tende a existir nos círculos da Grande Lisboa e Grande Porto, permitindo também integrar as vontades culturais do interior e das ilhas, aprendendo e trabalhando conjuntamente na preservação das suas tradições, do seu rico património natural e na gestão das paisagens culturais. É preciso reconhecer as duas realidades históricas na consolidação destas duas “identidades patrimoniais”. O Interior, historicamente mais isolado e com uma densidade demográfica menor, tornou-se num espaço de preservação do passado cultural, com vários vestígios que perduram desde a Pré-história passando pela forte presença romana, pelos vestígios arqueológicos do período muçulmano, aos vários castelos medievais que defendiam as fronteiras do reino de Castela. O litoral, mais cosmopolita, contém as principais cidades. Destaca-se aí um conjunto de elementos comummente identificados como identitários do património do país, como as igrejas e fachadas com azulejos, a talha dourada, o tardo-gótico manuelino, que tanto nos caracteriza, mas que também nos mantem reféns de um certo exclusivismo.

Para além destas referências materiais, encontramos ainda duas grandes riquezas do património cultural nacional. No interior, o sentido comunitário é fundamental, sendo evidente em algumas das tradições mais valorizadas, como as festas de inverno ligadas ao entrudo da região norte e o cante alentejano, a sul. Nas cidades do litoral, um outro valor advém do pluriculturalismo que resulta da integração de vários povos e culturas ao longo dos séculos, de onde terá emanado a canção nacional portuguesa, o Fado, uma tradição que germinou nos bairros humildes de Lisboa, e entre os estudantes universitários em Coimbra, mas que se estende a todo o país, sobretudo a variante de Lisboa. No presente, esta multiculturalidade urbana continua fervilhante, composta maioritariamente por uma emigração proveniente dos países de língua portuguesa, mas também de outras comunidades recentes, mas já com algum arraigo, como a ucraniana, a moldava e a nepalesa.

A força da nossa cultura para se renovar e para conservar as suas várias identidades, não depende de uma decisão de isolamento, mas sim do esforço criativo dos vários agentes culturais. Essa coesão pode ser facilitada pelas verbas que o PRR tem destinado para o património cultural, desenvolvendo-se através de um equilíbrio entre o sentido comunitário do interior do país e o multiculturalismo das cidades do litoral. Seguindo a já citada Convenção de Faro, estamos perante uma oportunidade para entender a diversidade num sentido mais amplo, abandonando a narrativa do sincretismo cultural, que nos fala de relações dialéticas entre duas identidades culturais distintas e, por sua vez, invista numa perspetiva multidialética, que consiga gerar um processo de convivência comum entre o tradicional e o moderno e entre o passado e o presente. Acredito que assim é possível criar “um atalho para a equidade”, evitando que um certo filistinismo, mascarado de esteticismo, consiga, uma vez mais, estratificar o património.

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