A taxa única: uma ideia liberal?

Há razões para duvidar que uma queda vertiginosa na progressividade do IRS possa concretizar uma concepção liberal de justiça social.

É hoje consensual entre uma vasta parte do espectro político liberal que as desigualdades de rendimentos são justas quando (1) a sua magnitude não significa que os titulares de rendimentos mais altos conseguem ter mais influência política que os demais, (2) promovem a igualdade de oportunidades e (3) concorrem para elevar a condição das pessoas mais desfavorecidas. Ora, Portugal apresenta uma das maiores taxas de desigualdade de rendimentos da Europa, assim como uma das maiores taxas de pobreza. Assim sendo, poderá não ser possível sustentar que as desigualdades que sobrevêm este país observam as três condições que enumeramos.

Atento o facto de o imposto progressivo sobre rendimentos ser uma ferramenta eficaz em matéria de combate às desigualdades neste domínio, a proposta da Iniciativa Liberal de instituir uma taxa única de 15% (eventualmente acompanhada de uma transitória taxa de 28% em rendimentos anuais superiores a 30.000 euros) deve ser bem ponderada. Actualmente, um super-gestor que viva sozinho, não tenha menores a cargo e aufira uma remuneração anual milionária está sujeito a uma taxa de Imposto sobre Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) de 48% no que toca à tranche do seu rendimento superior a 80.882 euros. A proposta que referimos sujeitá-lo-ia a uma taxa de 28% e ainda isentaria totalmente os primeiros 9307.20 euros. Isto representaria uma acentuada redução da progressividade do IRS português.

A Iniciativa Liberal recorda que, em grande medida, já vigora uma espécie de taxa única noutros pontos do sistema fiscal português. Refere, por um lado, a taxa de 20% aplicada a residentes não habituais. Quanto às vantagens e desvantagens deste regime em matéria de distribuição de rendimento pouco se sabe, uma vez que o Governo não publica e talvez não produza avaliações periódicas dos seus efeitos. Susana Peralta sustenta na edição do PÚBLICO de 4 de Fevereiro de 2022 ("Contribuintes suecos indignados, contribuintes portugueses resignados") que um esquema semelhante na Dinamarca – limitado a um período de três anos – não havia surtido efeitos positivos nos rendimentos dos demais trabalhadores.

Por outro lado, os defensores da taxa única de 15% recordam também que já é aplicada uma taxa única a certos tipos de rendimentos: as taxas liberatórias sobre rendimentos de capital. Os rendimentos de capital são um tipo de rendimento particularmente concentrado em Portugal. Segundo o European Union Statistics on Income and Living Conditions, em 2014, os 10% do topo da distribuição de rendimento bruto concentravam 51%. O Expresso noticiou a 28 de Janeiro de 2022 que 5% da população tinha em suas mãos 42% de toda a riqueza.

Sob este aspecto, a existência de taxas únicas neste domínio é problemática, porquanto aqueles que mais capital detêm não pagam uma proporção de imposto sobre ele maior do que os que menos têm, coisa que desencoraja a dispersão de riqueza entre a população. Há ainda várias outras razões pelas quais as taxas liberatórias são perversas e sobre as quais poderemos escrever posteriormente. Dito de outra forma, os exemplos de taxas únicas, citadas pela Iniciativa Liberal, já observadas em Portugal não são boas considerações em favor de uma taxa única de 15% sobre todos os rendimentos.

É certo que a reflexão sobre a justiça fiscal não se pode cingir ao IRS. A justiça fiscal não é uma função de um só imposto. É determinada pelos resultados alcançados pelo sistema fiscal no seu conjunto, e pelo restante aparelho legal de uma sociedade, na distribuição de rendimentos, riqueza e oportunidades. Por conseguinte, a existência de um elemento menos progressivo num determinado aspecto do sistema fiscal não será perverso se for compensado por outras vias. Se a introdução da taxa única fosse compaginável com a igualdade na participação política, uma igualdade equitativa de oportunidades e a elevação da condição das pessoas mais desfavorecidas, a proposta da Iniciativa Liberal poderia não ser problemática.

No entanto, uma redução acentuada da progressividade em toda a extensão do IRS dificilmente pode ser compensada. Conforme referimos, é a ferramenta que historicamente se revelou mais eficaz para refrear as desigualdades de rendimentos.

Segundo Gabriel Zucman e Emmanuel Saez (The Triumph of Injustice: How the Rich Dodge Taxes and How to Make Them Pay, 2019), o imposto progressivo sobre rendimentos é historicamente a ferramenta mais potente no combate à desigualdade de rendimentos. O FMI recordou em 2017 que o IRS desempenha um papel importante no combate à desigualdade em Portugal (FMI de Vítor Gaspar destaca Portugal pelo combate às desigualdades).

Demais a mais, há vários outros aspectos do sistema fiscal que actualmente concorrem para que este seja bastante mais regressivo do que habitualmente dão a entender os dirigentes da Iniciativa Liberal. Entre estes, figuram o recurso muito alto por parte de Portugal a impostos indirectos e o facto de o Imposto Municipal sobre Imóveis ser hoje um imposto regressivo em virtude do facto de os valores fiscais das habitações não acompanharem os valores de mercado. Esta situação agrava-se quanto maior for o valor do activo imobiliário.

O liberalismo compreende um amplo conjunto de posições. Estas divergirão, entre outros aspectos, quanto à maneira de conjugar os princípios que referimos na introdução deste texto. Há, contudo, razões para duvidar que uma queda vertiginosa na progressividade do IRS possa concretizar uma concepção liberal de justiça social.

Pedro Silva é investigador colaborador do Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho
Roberto Merrill é professor auxiliar de filosofia na Universidade do Minho e investigador do Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma universidade

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