A guerra e os traidores

A guerra hedionda a que assistimos em tempo quase real transformará a natureza da relação da extrema-direita europeia ocidental com o Kremlin?

Le Pen, Zemmour e muitos outros líderes da extrema-direita europeia não raramente defenderam publicamente muitos dos argumentos de Putin. Eles, tal como o czar russo, são fervorosamente contra a globalização, resolutamente conservadores e sentem a mais sincera aversão ao liberalismo individualista, ao cosmopolitismo e ao multiculturalismo, entre outras inclinações ideológicas idiossincráticas. A pergunta que aqui faço é muito simples: a guerra hedionda a que assistimos em tempo quase real transformará a natureza da relação da extrema-direita europeia ocidental com o Kremlin?

O principal objectivo de qualquer partido político é o de conquistar eleitorado para a sua causa. Qualquer associação ou alinhamento futuro das lideranças extremistas europeias com o regime de Putin seria rapidamente transformado numa grave debilidade eleitoral pelas forças políticas rivais e pelos media. Um custo proibitivo, sem dúvida. Certamente não será descabido afirmar que Putin não é visto com bons olhos pela vasta maioria dos eleitores europeus. O que podem fazer os líderes da extrema-direita europeia (e alguns da extrema-esquerda) para se libertarem do pesado ónus do seu alinhamento ideológico com Moscovo? Negar as afinidades que afirmaram publicamente perante todos, encenando um embaraçoso e muito oneroso volte-face que parecerá uma admissão de inépcia ou de cobardia política? Não me parece. Insistir no erro? Decididamente não.

Antes de prosseguirmos, é importante compreendermos de forma mais precisa o contexto político actual da extrema-direita europeia. Em quase todos os países europeus, a extrema-direita não conseguiu ascender a uma posição eleitoral hegemónica ou sequer decisiva. A oposição à imigração não surtiu o efeito desejado, os elaborados argumentos civilizacionais e a desinformação persuadiram poucos. A camuflagem da suposta “normalização” convenceu alguns incautos, mas alienou muitos devotos puristas para quem a “autenticidade” é um atributo sacrossanto.

É mais do que provável que nas próximas eleições presidenciais francesas, Le Pen e Zemmour (e até Mélanchon) sejam penalizados pelas suas afinidades com, e apologias do, Kremlin. Este será, inquestionavelmente, o primeiro grande teste de stress eleitoral dos simpatizantes e apologistas europeus de Putin. Se tal acontecer, quase todas as extremas direitas europeias terão de reformular as suas narrativas geo-estratégicas. É até possível que o estigma da cumplicidade ideológica induza alguns dos seus bem-amados líderes a abandonar a política e a renovar as lideranças com personas supostamente impolutas. Naturalmente, os estrategas das forças políticas rivais, que também leram Maquiavel e Tsunetomo, e os sempre perspicazes jornalistas de investigação, depressa acentuarão o facto inegável de que a vergonhosa camaradagem de outrora emanou de uma afinidade ideológica profunda que não pode ser branqueada, ocultada ou erradicada por uma simples renovação das elites políticas radicais. O que fazer perante tal imbróglio, perguntaria o irrequieto Lenine.

Apenas uma resposta me parece plausível. Em vez de reafirmarem ou negarem a sua cumplicidade ideológica com o Kremlin, os novos líderes da extrema-direita europeia poderão, também eles, ostracizar Putin, seguindo fielmente e de forma muito oportunista as tendências reveladas pelas sondagens de opinião.

É importante notar que a ostracização de que vos falo não é uma mera negação da cumplicidade de outrora. Será habilmente apresentada como uma afirmação contundente de “autenticidade ideológica”. Imaginem uma líder carismática da extrema-direita francesa a proferir as seguintes palavras: “Putin ameaçou o ocidente cristão, ameaçou a França e expulsou-nos de África! A França nada fez para prejudicar a Rússia. Putin iniciou uma guerra injustificável no coração da Europa. Instrumentalizou os fluxos migratórios do Médio-Oriente e de África, transformando-os em armas numa guerra híbrida.” O oportunismo sempre fez parte do ADN da extrema-direita. Está claramente patente na construção ideológica esquizofrénica da Nova Direita, uma amálgama filosoficamente indefensável, mas politicamente eficaz, de Gramsci, Foucault, Marx, Deleuze, Sorel, Maurras, Mussolini etc. Todas as suas crenças estão ao serviço do autoritarismo e da conquista do poder, incluindo a crença de que Putin é um aliado.

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