Ser mulher significa viver com este medo gravado no ADN

A violência é a principal causa de morte das mulheres entre os 14 e os 44 anos. Mata mais do que a soma das mortes por cancro, malária e acidentes.

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Em Tirana, Albania, uma instalação que lembra a violência contra as mulheres, no Dia Internacional da Mulher FLORION GOGA/Reuters

Com apenas dez anos procurou a minha ajuda, por ter medo de homens e de rapazes. A Vitória tinha sido apalpada por um rapaz na escola e ouvido “piropos” ordinários de um condutor, no caminho para casa. No final da consulta pediu-me para a acompanhar até ao portão da escola, porque as aulas já tinham terminado e assustava-a a possibilidade de encontrar grupos de rapazes mais velhos que gozassem com a sua roupa.

Tinha a mesma idade da Vitória quando no final de uma aula de matemática o professor nos fez algumas perguntas de cultura geral. Ganhei um doce por saber quem é a intérprete da música “Luka” (Suzanne Veja), muito em voga naquela época, e que conta a história de uma rapariga que em casa “ia contra as portas”.

A história da Vitória também é a minha e a de tantas outras meninas/raparigas/mulheres. Incomum na sua idade foi a elevada consciência da violência contra ela exercida e a forma como projectava o seu futuro: “Só tenho 10 anos, como é que vai ser depois?” Ser mulher significa viver com este medo gravado no ADN, que nos faz pensar duas vezes antes de fazermos algo tão banal como passar à frente de um grupo de homens ociosos. É que 90% dos crimes violentos são cometidos por homens.

Um dos indicadores mais determinante do grau de violência de uma nação é a que é exercida contra as mulheres e a normaliza, sendo ela universal e tão antiga como a própria civilização. Não obstante a igualdade de género ser um dos 17 objectivos do desenvolvimento sustentável, o preconceito, a discriminação e a violência contra as mulheres acontece em casa, na rua, no local de trabalho e nas redes sociais, onde a máscara cobarde do anonimato fomenta as piores manifestações de misoginia.

A violência é a principal causa de morte das mulheres entre os 14 e os 44 anos. Mata mais do que a soma das mortes por cancro, malária e acidentes. Todos os anos são assassinadas 50 mil mulheres no mundo por um familiar, incluindo companheiros ou ex-companheiros. Em Portugal, 23 mulheres foram assassinadas em 2021 (13 por femicídio). Acresce que, segundo a OMS, uma em cada quatro mulheres já foi vítima de violência doméstica: física e/ou psicológica.

E o que dizer do facto de as mulheres representarem actualmente quase metade do emprego em Portugal e serem mais qualificadas, mas terem mais contratos precários, uma maior taxa de desemprego e ganharem menos que os homens (cerca de 21%!)? Trabalhar a tempo inteiro resulta numa sobrecarga muito grande para as “formiguinhas dos bastidores”, que continuam a ter mais horas de trabalho não pago, ao assumirem a maioria dos cuidados da casa e da família!

Repercute-se ainda na sua saúde: as mulheres vivem mais anos do que os homens, mas têm menos três anos de vida saudável! A dor nas mulheres é mais desconsiderada pelos médicos: se um homem se queixa de dor é mais facilmente medicado, uma mulher é, tendencialmente, encaminhada para psicoterapia! E há também 30% de mulheres em Portugal que afirmam ter sido objecto de violência obstétrica durante o parto, não sendo tratadas com dignidade, num momento de imensa fragilidade!

Nas eleições legislativas de 2022, apenas foram eleitas 84 deputadas (37%) e a partir das autárquicas de 2021 só 29 mulheres (9%) são presidentes de câmara. É grave esta falta de representatividade! Por este andar, e segundo dados do Fórum Económico Mundial, não só faltam ainda 133 anos até que se possa atingir a paridade nas lideranças políticas de topo, como a pandemia está a atrasar em 30 anos essa evolução. A igualdade de género não é um problema de mulheres, é um problema social! Sociedades mais paritárias constroem democracias mais fortes. Se dúvidas havia, foi só olhar para os países do mundo que responderam, no imediato, com mais eficácia à pandemia.

Não há como escamotear o óbvio! Apesar de muitas leis discriminatórias terem sido alteradas, o patriarcado continua a ser o sistema dominante de opressão política, económica, cultural e religiosa, conferindo domínio e privilégios ao sexo masculino e impondo-se através de múltiplas formas de agressão, mais ou menos subtis. Não é inerente à condição humana, mas sim imposto pela cultura. Ele exalta os valores (e defeitos) masculinos e subjuga a metade feminina da humanidade, a uma linha traçada entre a discriminação e o silêncio.

Nem sempre quem sofre repressão tem consciência da mesma (ou leva muito tempo a ter). A repressão perfeita não é percepcionada por quem a sofre; é fruto da educação, de tal forma que os mecanismos de repressão passam a estar no próprio indivíduo. Como diria Simone de Beauvoir “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”.

Também nem sempre é consciente para quem a perpetra. Isabel Allende, aos 20 e muitos anos, tinha uma coluna num jornal chileno intitulada “Civilize o seu troglodita”, que ridicularizava o machismo, com humor. Por ironia do destino era muito popular entre os homens. A razão era porque lhes fazia lembrar um amigo. Era sempre um amigo! Não se reviam na caricatura!

Segundo Galtung, se um marido bate na esposa estamos perante um caso de violência doméstica, mas quando um milhão de maridos repete o mesmo acto sobre um milhão de esposas a isso chama-se violência estrutural, que se caracteriza, precisamente, por não a reconhecermos enquanto violência.

No mês em que comemoramos mais dias em democracia do que em ditadura em Portugal e o Dia Internacional da Mulher, vale a pena citar Valter Hugo Mãe em máquina de fazer espanhóis a propósito da dita democracia que chegou com o 25 de Abril ao nosso país: “a democracia é excelente ainda que viesse só para os homens”, obedecendo a “desígnios falocráticos de uma sociedade tão musculada”. Se nada fizermos, mulheres e homens, para alterar este cenário, o que teremos para responder à pergunta das meninas Vitória desta vida: “Só tenho 10 anos, como é que vai ser depois?” O que vai querer responder à sua filha?

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