Grande Prémio de Angoulême para a obra radicalmente feminista de Julie Doucet

O universo feminino numa obra de forte cariz autobiográfico: à 49.ª edição, a autora canadiana é a terceira mulher a ser distinguida com o Grande Prémio do festival de banda desenhada mais importante do mundo.

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A canadiana Julie Doucet recebeu o Grande Prémio do Festival Internacional de Banda Desenhada (BD) de Angoulême, em França, a mais importante distinção internacional no domínio da chamada nona arte, anunciou a organização na noite de quarta-feira.

A autora de 56 anos foi premiada pelo conjunto da sua obra, tornando-se a primeira personalidade de nacionalidade canadiana a conquistar o prémio, que tem sido atribuído maioritariamente a desenhadores europeus, muitos deles franceses ou belgas, países cuja produção é há décadas uma referência no que toca à BD.

Nascida em Montreal, no Quebeque, e com formação em artes plásticas, descobriu a banda desenhada e fez dela o seu meio de expressão na década de 1980, começando a publicar a sua autobiografia gráfica, Dirty Plotte, em fotocópias que fazia circular.

Este fanzine, descrito como subversivo, irónico e tremendamente honesto, viria a ser publicado pela primeira vez no circuito oficial em 1991, pela editora canadiana Drawn & Quarterly, transformando-se num marco da carreira de Julie Doucet, hoje mais próxima das artes gráficas do que da BD no sentido clássico.

“Tenho dificuldade em acreditar [que ganhei o prémio]. Na verdade, estou muito nervosa”, disse Julie Doucet, citada pela AFP, na cerimónia em que recebeu o galardão, no Teatro Nacional de Angoulême, e em que lembrou que para ela tudo começou com um pequeno fanzine com um título pouco claro. “E agora estou aqui, em Angoulême, a receber o prémio mais importante da indústria da banda desenhada”, acrescentou a criadora, que é avessa à exposição pública.

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Julie Doucet

Um comunicado da organização descreve a autora premiada nesta 49.ª edição do festival como alguém que “desenha sem concessões, de forma radical e subversiva”.

Pioneira da BD de raiz autobiográfica, Doucet usa a sua arte para falar do quotidiano – o seu, mas também o de tantas outras mulheres, cujos direitos faz questão de defender, expondo os obstáculos que enfrentam e as situações de violência e de discriminação a que são sujeitas pelos mais variados motivos.

Dando a conhecer alguns dos seus medos e desejos mais íntimos, a autora canadiana “construiu uma obra eminentemente pessoal e livre, sem seguir convenções: uma obra radicalmente feminista que aborda temas raramente evocados de forma tão directa, como o corpo, a menstruação, os fantasmas sexuais e as questões de género”, acrescenta a organização no já referido comunicado, não hesitando em classificá-la como uma das mais importantes autoras de BD do final do século passado.

A ensaísta Anne-Elizabeth Moore, que estudou a sua produção, considera-a precursora de um novo feminismo na BD e a partir dela escreveu uma obra cujo título não deixa dúvidas da centralidade que reserva à mulher: Sweet Little Cunt: The Graphic Work of Julie Doucet.

Da bibliografia de Doucet, profundamente marcada pelo registo diarístico, fazem parte títulos como À L'école de L'amour, The Madame Paul Affair, My New York Diary e 365 Days: A Diary by Lucy Doucet.

Em quase 50 edições, note-se, Julie Doucet, autora que viveu em Nova Iorque, Seattle e Berlim, é apenas a terceira mulher a ganhar o Grande Prémio deste importante festival, depois da francesa Florence Cestac (2000) e da japonesa Rumiko Takahashi (2019).

Desde 2 de Março, dia em que foi anunciada a shortlist, que se sabia que este ano o Grande Prémio iria parar às mãos de uma mulher. Na recta final, Doucet bateu as francesas Pénélope Bagieu e Catherine Meurisse, que já em 2021 tinham estado entre os finalistas, sendo então ultrapassadas pelo norte-americano Chris Ware, autor da série ACME Novelty Library e de novelas gráficas como Jimmy Corrigan ou The Smartest Kid On Earth.

O festival, cujo Grande Prémio foi já entregue a autores incontornáveis como Emmanuel Guibert, Franquin, Zep, Art Spiegelman, Bill Watterson e Richard Corben, abriu na quarta-feira com um “concerto de desenhos” em homenagem ao povo ucraniano, que a 24 de Fevereiro viu o seu território invadido pelo exército russo. com Lusa

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