Guerra e Paz


Estivesse vivo o autor das Crónicas de Sebastopol, argamassa existencial para a obra-prima Guerra e Paz, estou convencido de que não ficaria indiferente à invasão russa da Ucrânia. Muito possivelmente, reescreveria o seu monumental retrato da invasão napoleónica e substituiria o drama das famílias de Moscovo e São Petersburgo por famílias em Kiev e Kharkiv.

Só os ingénuos podiam pensar que Putin precisa de alguma razão para justificar a brutalidade das suas ações. O seu pensamento relativamente à Ucrânia já estava plasmado em discursos e declarações anteriores, na verdade, desde que ficou claro que não havia na Ucrânia um governo fantoche como o da Bielorrússia. Certamente, muitas considerações de natureza geopolítica podem ser alinhadas para explicar, nunca justificar, a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas quando um ditador, inspirado por décadas de totalitarismo soviético, desencadeia uma ação militar contra um país soberano, contra um governo democraticamente eleito, com o fim de pacificá-lo e desnazificá-lo, voltamos aos tempos dos tribunais de Moscovo nos anos 1930, quando a deformação factual e linguística não tinham limites e a verdade histórica e os direitos humanos não valiam absolutamente nada. Voltamos aos tempos do nazismo, quando uma mentira muitas vezes repetida se transformava numa verdade.

A invasão da Ucrânia em 2022 é tão monstruosa e absurda como outras ações do império russo-soviético no passado: divisão da Polónia com a Alemanha Nazi em 1939, a invasão da Finlândia no mesmo ano, a anexação dos países Bálticos em 1940, a repressão e invasão da Alemanha Comunista em 1953, da Hungria em 1956, da Checoslováquia em 1968. A lista é mais longa e, na era Putin, Chechénia em 1999, Geórgia em 2008 e Crimeia em 2014. São atos abomináveis que ensombram a dignidade do povo russo e da sua extraordinária cultura. Quando um ditador humilha a história do seu país e desrespeita a dignidade humana do seu povo e dos povos vizinhos, não há qualquer justificação política, económica ou histórica aceitável. Putin envergonha tudo e todos por não entender que o verdadeiro poder é a capacidade de poupar os nossos semelhantes das provações e do sofrimento. A mesquinhez, sordidez e desumanidade desta invasão nunca serão esquecidas.

Mas a invasão desencadeou desenvolvimentos mais estruturantes. Neste curto espaço de tempo desde o início da cobarde e criminosa invasão, assistimos a transformações políticas que não se viam há décadas. Primeiramente, confirmaram-se as muito comentadas e até ridicularizadas declarações diplomaticamente desastradas do Presidente dos Estados Unidos da América: Putin é um assassino; e, de facto, as ditas manobras militares conjuntas Bielorrússia-Rússia eram, na verdade, o prelúdio da invasão.

Mas há consequências mais profundas: é hoje evidente que o discurso hipócrita dos que defendem uma putativa neutralidade não passa de uma grotesca peça de propaganda dos simpatizantes de Putin na extrema direita e dos que, no PCP, acreditam que o problema é a NATO. A Rússia demonstrou que não respeita nada nem nenhum acordo que esteja no caminho dos seus interesses imperiais. Como gigante militar, mas anão económico e ideológico, à Rússia só resta impor os pontos de vista do seu ditador através da força militar.

A Europa acordou surpreendida com o renascer da guerra no seu seio depois de muitas décadas de relativa paz. Certamente, o conflito nos Balcãs nos anos 1990 foi traumático, mas o relativo distanciamento das superpotências, que exerceram o seu poder bélico, mas não se confrontaram diretamente, permitiu que a fragmentação da Jugoslávia se tenha cristalizado em novos países que foram obrigados a conviver pacificamente. A evidente fraqueza da Europa de então não se alterou e é hoje claro que não é mais sustentável. A pujança económica e cultural da Europa é demasiado vulnerável do ponto de vista militar, pelo que terá que se rearmar. É um desenvolvimento indesejado, mas inevitável.

Quanto às duas superpotências, EUA e China, tudo depende da forma como abordam e abordarão o exercício do poder que detêm. Os EUA parecem ter percebido que têm novamente um rival com um poder equivalente e que não podem impor os seus interesses, em todas as partes. Para o bem do mundo, a China tem que abandonar a sua paciência cínica e intervir para travar conflitos, desejavelmente em conjunto com os EUA e a Europa. Ao alinhar-se com a Rússia, compromete claramente a estabilidade internacional. O mutismo da China relativamente à invasão e destruição da Ucrânia é paradigmático, pode ser-lhe útil a curto prazo, mas não favorece a sua estatura política e diplomática a nível internacional.

Certamente, não são estes os desenvolvimentos que esperávamos ver no século XXI. O sonho de uma humanidade unida e empenhada na resolução dos problemas da fome, das desigualdades sociais, do respeito pelos direitos humanos e das alterações climáticas parece estar novamente adiado por conta da mesquinhez anacrónica de uma potência militar governada por um ditador com veleidades imperiais.

Uma última palavra para os que pretendem contextualizar a invasão russa e mitigá-la com considerações laterais acerca da NATO, União Europeia e comparações igualmente vergonhosas. Nunca é supérfluo recordar o verdadeiro resultado de uma guerra: morte e sofrimento humano. Há vítimas e um invasor dotado de meios militares extraordinários. Considerações de qualquer outra natureza são exercícios retóricos maliciosos para confundir as mentes incautas e favorecer o agressor.

Estivesse vivo o autor das Crónicas de Sebastopol, argamassa existencial para a obra-prima Guerra e Paz, estou convencido de que não ficaria indiferente à invasão russa da Ucrânia. Muito possivelmente reescreveria o seu monumental retrato da invasão napoleónica e substituiria o drama das famílias de Moscovo e São Petersburgo por famílias em Kiev e Kharkiv. Estas famílias ser-nos-iam mais próximas por não serem nobres e estarem mergulhadas nos problemas que nos afligem a todos hodiernamente.

Estivesse Tolstói vivo, estou certo de que não permitiria que o seu amor pela alma russa interferisse na condenação perentória e no profundo desprezo pelos comandantes deste tão ignóbil ato de cobardia em nome do povo que ele tanto amava. O seu sentido de justiça não teria qualquer dúvida diante da monstruosidade desta invasão. A sua indignação de escritor e de ser humano daria voz às vítimas ucranianas contra a opressão de um invasor impiedoso e selvagem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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