Atletas na guerra: “Não quero disparar sobre ninguém, mas, se me querem matar, não vou ter escolha”

Há muitos medalhados olímpicos ucranianos que pegaram em armas e estão a defender o seu país durante a invasão. Mas também há outros que continuam a treinar-se.

Foto
Oleksandr Usyk DAMIR SAGOLJ/Reuters

Nem um mês passou desde que Oleksandr Abramenko conquistou uma medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Inverno, no esqui freestyle. Seria a única da Ucrânia em Pequim e a segunda de Abramenko na sua carreira olímpica, ele que tinha sido campeão em Pyeongchang 2018. As duas medalhas estavam entre as poucas coisas que levou na bagagem quando fugiu de Kiev após duas semanas escondido na garagem do prédio onde vivia com a mulher e o filho de dois anos.

Foram dias no subterrâneo a ouvir explosões e alarmes de ataques aéreos, como contou a um jornalista do New York Times, antes de abandonar a capital ucraniana rumo a outra cidade. O mesmo jornalista confirmou vários dias depois que Abramenko tinha conseguido fugir de Kiev, mas não da Ucrânia. Ele já sabia que, como todos os homens ucranianos entre os 18 e os 60 anos, não podem sair do país, têm de ficar e contribuir para a resistência contra a ofensiva militar da Federação Russa. Não será o único medalhado olímpico da Ucrânia a fazê-lo.

Já sabemos que Vladimir Klitschko, campeão olímpico de boxe em 1996 e um dos melhores pugilistas de sempre, está ao lado do irmão mais velho Vitaly, também um ex-pugilista com uma grande carreira e presidente da câmara da capital ucraniana, na defesa da cidade. Ambos já se deixaram fotografar com armas na mão e têm sido duas das vozes da resistência em Kiev mais ouvidas na imprensa internacional.

Nas fileiras da defesa ucraniana estão os outros dois campeões olímpicos de boxe do país, Oleksandr Usyk (ouro em Londres 2012) e Vasiliy Lomanchenko (ouro em Pequim 2008 e Londres 2012). Ambos estavam longe da Ucrânia quando aconteceu a invasão russa a 25 de Fevereiro, Usyk em Londres a filmar cenas de um jogo de computador, Lomancheko de férias na Grécia. Ambos apanharam de imediato aviões até aos países que fazem fronteira com a Ucrânia e fizeram o resto do caminho a conduzir. Usyk foi para Kiev e Lomanchenko para Odessa.

Usyk é o detentor de vários títulos na categoria de pesados, depois de ter batido no ringue em Setembro do ano passado o britânico Anthony Joshua, e já estava planeado um novo combate para Maio. Mas o regresso aos ringues é a última coisa na cabeça de Usyk, natural de Simferopol (Crimeia) e que nunca quis assumir uma posição sobre o conflito na província anexada pela Rússia em 2014 – os seus pais são ucranianos, mas a sua primeira língua é o russo e a mulher tem nacionalidade russa.

Agora, o pugilista de 35 anos não tem dúvidas sobre o lado em que deve estar. “A minha alma pertence ao Senhor, o meu corpo e a minha honra pertencem ao meu país”, diz Usyk à CNN, garantindo que está preparado para matar se a sua vida ou de alguém da sua família estiver em risco. “Se alguém me quiser matar ou alguém que me seja próximo, terei de o fazer. Não o quero fazer, não quero atirar sobre ninguém, mas se me querem matar, não vou ter escolha.”

Três pistolas e uma granada

Dos medalhados em Tóquio 2020, há quem tenha ficado para trás a contribuir para o esforço de guerra, há quem esteja entre os milhões de refugiados que a invasão já causou, há quem tente ainda manter um fragmento de normalidade e treinar-se para competições futuras, outros ajudam à distância, numa missão de recolha de fundos e outros bem essenciais, e de sensibilização contra a agressão. Mas é impossível determinar o destino de todos os medalhados olímpicos da Ucrânia em tempo de guerra. Alguns vão conseguindo passar informação através da imprensa local, outros através das redes sociais, mas nem todos as têm.

Zhan Beleniuk está habituado a combater, mas não assim. Ele foi o único campeão olímpico da Ucrânia em Tóquio 2020, medalha de ouro na luta greco-romana em 87kg, mais um título num longo currículo recheado de títulos europeus e mundiais. Em 2019, foi eleito como deputado do parlamento ucraniano pelo mesmo partido do líder ucraniano Volodimir Zelensky, o primeiro negro a consegui-lo, ele que nasceu em 1991 ainda como cidadão da União Soviética filho de pai ruandês e mãe ucraniana.

Em Março de 2022 é um dos que ficou para trás e continua em Kiev, com três pistolas e um granada guardadas na secretária, pronto para se defender se os soldados russos vierem à sua procura. “Quando perdemos um combate, há sempre o dia seguinte. Aqui, podemos morrer a qualquer momento. Não é apenas a nossa vida, é a vida da nossa família, o futuro do nosso país”, contava Beleniuk ao jornal The Guardian há poucos dias. O lutador-deputado não está na frente de batalha, mas na rectaguarda, a ajudar os seus compatriotas a sobreviver.

Seis nos Mundiais de atletismo

Com uma guerra a acontecer, tudo passa para segundo plano no palco mediático. Haverá, por exemplo, menos gente a ligar aos Mundiais de atletismo de pista coberta que irão acontecer em Belgrado entre 18 e 20 de Março. Não terá atletas russos, mas terá uma pequena comitiva ucraniana, composta por seis mulheres e algumas, a uma semana do início da competição, estão a treinar dentro das fronteiras do próprio país. Segundo informou a própria federação ucraniana de atletismo, as atletas estão em cidades longe das zonas de conflito, mas não revelou a localização.

Yaroslava Mahuchikh está na comitiva ucraniana para participar nos Mundiais indoor, sendo uma das favoritas ao título no salto em altura, ela que foi medalha de bronze nos Jogos de Tóquio e vice-campeã mundial em 2019. Antes da invasão, as suas redes sociais eram o espelho da vida normal de uma atleta de apenas 20 anos, sorridente em todas as fotos um pouco por todo o mundo (incluindo Portugal). Agora, partilha mensagens de união e resistência. “Unidade é apoiarmo-nos uns aos outros em qualquer situação, estarmos juntos apesar dos obstáculos e problemas”, escreveu há uma semana no Instagram, uma das últimas mensagens que publicou nesta rede social.

Outro que tenta uma normalidade possível é Mykhailo Romanchuck, vice-campeão olímpico dos 1500m livres e medalha de bronze nos 800m, ambas as medalhas conquistadas em Tóquio 2020. Está em Khmelnytsky, numa zona mais ocidental da Ucrânia, a acompanhar a mulher, Maryna Bekh-Romanchuk, vice-campeã mundial do salto em comprimento e que também estará nos Mundiais em Belgrado.

O nadador não poderá acompanhá-la, por causa das restrições impostas aos homens ucranianos, e sabe que terá de fazer o mesmo que o pai, de quem partilhou uma fotografia no Instagram acompanhada de uma mensagem a manifestar orgulho: “Sempre foste e sempre serás um exemplo.”

Quanto à saltadora, ela bem tenta estar nas melhores condições para levar, através do desporto, algum conforto aos seus compatriotas. Mas não consegue. “Os treinos não funcionam. Há demasiada confusão na minha cabeça. O corpo está pronto para trabalhar, mas a cabeça recusa-se a colaborar.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários