Martelo de Aço e Punho de Ferro: os Klitschko lutam pela Ucrânia

Os dois antigos pugilistas estão dispostos a pegar em armas na defesa de Kiev contra a ofensiva militar da Rússia.

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Vitali e Vladimir Klitschko, os dois irmãos pugilistas Reuters/GLEB GARANICH

Cada desporto em cada era tem os seus dominadores. Se falarmos de boxe entre meados dos anos 1990 e os primeiros 15 anos do século XXI, havia quase sempre um Klitschko a lutar por um título mundial de pesados (há vários). Vladimir e Vitali, os irmãos pugilistas, tinham alcunhas à medida, o “Dr. Martelo de Aço” e o “Dr. Punho de Ferro”, porque eram dois gigantes com longos braços para bater e defender. Ambos estão em Kiev, com armas na mão, preparados para a defesa da capital da Ucrânia contra a ofensiva militar da Federação Russa em curso desde a última quinta-feira.

Vitali, o mais velho, é o presidente da câmara de Kiev desde Junho de 2014, eleito pouco depois de ter sido um dos rostos da oposição nos protestos Euromaidan, que conduziram à queda do governo pró-russo liderado por Viktor Yanukovich. Mesmo quando ainda brilhava nos ringues, já era politicamente activo, várias vezes candidato nas eleições da capital, depois como deputado municipal e, mais tarde, no Parlamento nacional. Pelo contrário, Vladimir, cinco anos mais novo, nunca teve ambições políticas e levou a carreira no boxe até aos 40 anos.

Habituados à ribalta desportiva, os Klitschko têm sido dois dos rostos da resistência ucraniana na capital, eles que, enquanto pugilistas, construíram uma aura de invulnerabilidade. Ambos disponíveis para a luta armada contra “a marcha do imperialismo” de Vladimir Putin, como declarou há poucos dias o mais novo dos irmãos, que se alistou no exército reservista da Ucrânia.

Na sua mais recente mensagem no Twitter, em inglês, o ex-campeão diz que “não há tempo a perder para evitar uma catástrofe humanitária”. “Daqui a uma hora ou amanhã, já será demasiado tarde. Por favor, façam alguma coisa, acabem com esta guerra”, concluiu. Vitali, por seu lado, tem sido uma das vozes oficiais do lado ucraniano do conflito, utilizando as redes sociais para comunicar instruções de recolher obrigatório aos cidadãos da capital, e já se deixou fotografar em camuflado militar com uma metralhadora nas mãos.

Nascidos na URSS

Nenhum dos dois pugilistas ucranianos nasceu no território que agora prometem defender com armas. A família estava em permanente movimento pela URSS porque o patriarca, Vladimir, era oficial na força aérea soviética – Vitali nasceu na Quirguízia, Vladimir no Cazaquistão. Mas ambos estavam em terras ucranianas quando, a 26 de Abril de 1986, explodiu o reactor 4 da Central Nuclear de Tchernobil.

A família vivia numa base aérea perto do aeroporto de Kiev, a cerca de 90 quilómetros da central – Vitali tinha 14 anos, Vladimir tinha dez. O pai foi um dos primeiros militares a chegar ao local da explosão e participou nas operações de limpeza, acabando por morrer com 64 anos, com linfoma, que os médicos relacionaram com a exposição à radiação em Tchernobil.

O pai foi uma enorme influência no que os dois irmãos viriam a tornar-se. Ambos tiveram a disciplina e a força de vontade para se tornarem atletas de classe mundial, em paralelo com uma formação académica – os dois concluíram mestrados em Ciências do Desporto, dominam várias línguas, e é por isso que, antes das respectivas alcunhas, têm o título de Doutor.

Já após a desintegração da União Soviética, os irmãos Klitschko começaram a destacar-se ainda como pugilistas amadores. Vitali foi vice-campeão mundial de super-pesados em 1995, enquanto Vladimir se destacava numa categoria abaixo, a de pesados. O irmão mais velho teve um resultado positivo num controlo antidoping que o impediu de representar a estreante Ucrânia nos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996, e o mais novo ficou com o seu lugar na selecção e na categoria mais alta. Vladimir acabaria por ser um dos nove ucranianos a conquistar a medalha de ouro na estreia do novo país no palco olímpico, ao derrotar na final Paea Wolfgramm, de Tonga.

Vitali e Vladimir tiveram longas carreiras profissionais em paralelo durante duas décadas - nunca se defrontaram, por decisão de ambos – e ambos conheceram longos períodos de invencibilidade e títulos, sendo considerados dois dos melhores pugilistas de todos os tempos. Vladimir foi o que passou mais tempo nos ringues (21 anos) e retirou-se em 2017 com vários recordes, incluindo o de mais longo reinado como campeão mundial de pesados entre as várias organizações que atribuem títulos: 12 anos.

Ambos acabaram por se retirar como celebridades desportivas a nível internacional e com fortunas consideráveis, mas estão agora num abrigo algures em Kiev, à espera que nunca chegue a acontecer o combate com o exército russo. Se vier mesmo a suceder, o Dr. Punho de Ferro e o Dr. Martelo de Aço estão prontos.

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