Construído para durar?

O stock de habitação que for financiado a 100% pelo PRR deverá ficar para sempre em propriedade pública, garantindo o bem-estar das atuais e futuras gerações de famílias que precisem de habitação.

A tese do caráter estrutural e complexo da crise de habitação tem vindo a sobrepor-se à tese de que a habitação tem crises de natureza conjuntural. Começa finalmente a colocar-se a tónica, de uma forma convincente, na importância do desenvolvimento e implementação de modelos de promoção e gestão de habitação mais sustentáveis, do ponto de vista socioeconómico, territorial e financeiro.

É hoje amplamente aceite que as falhas de mercado e as (múltiplas) externalidades negativas produzidas por mercados de habitação sobreaquecidos requerem a criação de um setor de habitação sem fins lucrativos, para arrendamento e de qualidade, que seja adequado às necessidades (físicas, psicológicas, económicas) das famílias que não encontram soluções nas ofertas de mercado.

Contudo também se reconhece que este setor de habitação sem fins lucrativos deverá assentar numa forma diferente, substancialmente melhor, nos modos de pensar, planear, construir, reabilitar e fazer a gestão de habitação pública, que deve, por exemplo, contrariar as tendências de segregação e estigmatização territorial, socioeconómica e étnica, que os modelos anteriores criaram.

Neste sentido é altura de perguntar, na linha do que tem sido feito por outros investigadores, por que razão não se pode esperar para Portugal, como sucede em Inglaterra, que 40% dos novos empreendimentos residenciais sejam acessíveis às famílias de rendimentos médio-baixos? É que as evidências empíricas demonstram que, primeiro, o aumento significativo de nova habitação não significa, só por si, que esta passe a ser acessível a muitas famílias da classe média-baixa; segundo, que as políticas de planeamento urbano têm um papel crucial para assegurar a mistura de regimes de ocupação; e, terceiro, que o financiamento público disponível atualmente no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ao nível de comparticipações a fundo perdido e empréstimos bonificados, pode ajudar a alcançar este objetivo.

O caso inglês mostra que os instrumentos do planeamento urbano jogam um papel indispensável na criação de habitação acessível. Basta pensar que no período de crescimento económico entre 2005 e 2016, 83.790 habitações acessíveis na Inglaterra foram asseguradas através de acordos de planeamento; e que em 2015-16, estes significaram um total de 9640 novas habitações, permitindo que 68% de todas as casas concluídas nesse ano fossem disponibilizadas a preços acessíveis,

Para que tal aconteça em Portugal, os responsáveis governativos, ao nível nacional e local, devem deixar de pôr o foco meramente nas questões da quantidade (número de fogos: encontrar respostas habitacionais para pelo menos 26 000 famílias) e da urgência (executar os investimentos RE-C02-i01 e RE-C02-i02 do PRR até 2026) para passar a apelar a uma melhor cultura de planeamento e de avaliação das políticas de habitação.

Precisamos que o novo ciclo de investimentos PRR passe a trilhar os caminhos da sustentabilidade (financeiro, territorial e social) através da aposta:

  • numa melhor integração: de regimes de ocupação, de rendas, e de famílias;
  • numa maior qualidade e coesão sócio espacial, através de uma melhor integração espacial e aparência externa da habitação pública em empreendimentos mistos que permitam prevenir a estigmatização;
  • e proteção do stock de habitação público, impedindo futuras alienações ou futuras demolições como aconteceu no Porto.

O stock de habitação que for financiado a 100% pelo PRR deverá ficar para sempre em propriedade pública, garantindo o bem-estar das atuais e futuras gerações de famílias que precisem de habitação.

Os investimentos deverão ser feitos de um modo que a mistura de diferentes tipos de rendas (mercado, apoiada e acessível) permita não só garantir uma melhor integração social como que o retorno em cada empreendimento seja suficiente para cobrir as futuras obras de conservação, desenvolver medidas de apoio social às famílias ou mesmo como, se verifica no caso da Dinamarca, para apoiar a construção de novo stock de habitação no futuro, criando um setor de habitação sem fins lucrativos autossustentável.

Termino convidando os leitores a visitarem o PER Atlas, um mapa interativo criado pelo projeto de investigação exPERts que mostra os modelos de realojamento da população com carências de habitação usados pelos municípios da Área Metropolitana de Lisboa entre 1993 e 2018. Vale a pena seguir as setas e analisar as transferências de 2348 agregados familiares entre os 986 núcleos de origem e os 290 bairros de realojamento. A análise destes fluxos de população e a leitura das conclusões retiradas no âmbito dos estudos de caso ajudam-nos a perceber a relação entre os fatores de natureza ideológica, económica e territorial e as escolhas feitas pelos políticos e técnicos municipais ao nível da localização e das características (em termos de dimensão, localização, distância) das áreas de realojamento. Fazem-nos ainda pensar sobre os efeitos que estas escolhas políticas e técnicas poderão ter tido nas redes de sociabilidade, vizinhança e na coesão sócioterritorial destes municípios.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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