Arquitetura e demolição

Apesar de a história da demolição do bairro São João de Deus ser coisa do passado, ela ainda é uma ameaça no caso do Aleixo e, à semelhança do que acontece noutros países, poderá regressar à agenda das políticas urbanas no futuro.

A 17.ª Bienal de Arquitetura de Veneza, com curadoria do arquiteto libanês Hashim Sarkis, aborda a questão de “Como vamos viver juntos?”. No texto que escreveu para explicar o tema, Sarkis defende a necessidade de os arquitetos, em diálogo com outras profissões (políticos, cientistas sociais, artistas, ativistas…) e com o cidadão comum, procurarem um novo contrato espacial que proponha soluções concretas para a construção de espaços onde se possa viver generosamente em conjunto.

De uma forma eloquente, o curador explica-nos o que está em causa do seguinte modo: “Cinco pessoas entram numa sala que tem apenas quatro cadeiras. Quem se senta, e onde?” O arquiteto explica que o embaraço pode ser resolvido como no jogo das cadeiras (em que as pessoas circulam à volta das cadeiras até que a música pára e todos se sentam, ficando de fora a pessoa que não tem cadeira), ou através de um novo contrato espacial em que se alinham as cadeiras, em forma de banco, para que todos se possam encaixar.

In Conflict é o tema escolhido pela representação de Portugal na Bienal Internacional de Veneza. Os quatro jovens arquitetos-curadores, que formam os Depa Architects, convidam-nos a participar numa exposição e num ciclo de debates sobre as questões da habitação e do urbanismo como uma arena de conflitos sociais e políticos, ao longo do arco dos últimos 47 anos de democracia em Portugal.

De uma forma oportuna, a exposição lembra dois processos de demolição que transformaram dois bairros de habitação social na cidade do Porto: o bairro São João de Deus (SJD) e o bairro do Aleixo.

Sem pretender neste texto revisitar os resultados da investigação sociológica que já foi realizada e publicada sobre o tema [1], gostaria de salientar algumas ideias sobre os processos e as consequências urbanas e sociais da demolição.

Faço-o porque, apesar de a história da demolição do SJD ser coisa do passado, ainda é uma ameaça no caso do Aleixo, e porque à semelhança do que acontece noutros países, poderá regressar à agenda das políticas urbanas no futuro.

Gostaria de deixar quatro ideias sobre o tema:

Primeiro, a demolição de habitação não é uma solução para o problema do tráfico e do consumo de droga. Os territórios psicotrópicos não se extinguem com a demolição de habitação, só se deslocalizam para outras áreas.

Segundo, num país como Portugal (com um dos mais baixos valores relativos de habitação social da Europa) e numa cidade como o Porto (caracterizada por um elevado défice acumulado de habitação acessível para as famílias de rendimentos médios e baixos), é difícil entender a demolição de habitação social. Sobretudo quando essa habitação foi construída há poucos anos e quando havia margem para a sua reabilitação, como forma a garantir que podia ser mantida e usada no futuro.

Terceiro, os problemas do declínio urbano são o resultado das caraterísticas intrínsecas às áreas – de localização, de topografia, composição social e da estrutura habitacional e económica –, mas são também o resultado de fatores extrínsecos, tais como os discursos ou as narrativas que procuram a demonização de bairros e dos seus residentes.

Quarto, a decisão política da demolição tem sido justificada por razões técnicas: a existência de habitação de baixa qualidade, que exige elevados custos de reabilitação; a existência de um desenho urbano desqualificado, que reforça o isolamento dos bairros face à envolvente, a presença de problemas de criminalidade, associados ao tráfico e ao consumo de droga. Os decisores deveriam também considerar os elevados custos económicos e sociais que são impostos pelos processos de demolição. Passo a ilustrar com exemplos relativos ao bairro SJD.

Entre 2003 e 2005 foram demolidos 28 blocos habitacionais com 562 apartamentos, o que levou a uma redução de 80% da população residente no bairro. Após estas demolições, o bairro voltou a ser composto pelo núcleo das 144 habitações unifamiliares construídas nos anos 40. A demolição levou a 132 despejos (nos casos em que existia uma ocupação ilegal da habitação, decorrente, por exemplo, de trocas ou vendas de apartamentos), e ao realojamento de 430 famílias para outros bairros de habitação social. Uma grande parte das famílias, 45% do total, foi realojada na freguesia de Campanhã, onde se localiza o SJD. Embora a maior parte dos bairros de realojamento tivessem melhores condições de habitabilidade do que o SJD, em muitos casos as famílias queixaram-se da perda de espaço e da perda de qualidade habitacional. O Bairro do Cerco, que realojou um maior número de famílias provenientes do SJD (num total de 69 famílias), já contava à data do realojamento com uma população estimada em 3100 pessoas e com uma elevada prevalência de situações de desemprego, emprego precário e de tráfico de droga. Os processos de realojamento não promoveram o envolvimento das escolas e das instituições locais como atestam os excertos seguintes, retirados de entrevistas que fiz em 2006 no bairro.

“A informação que a Escola tinha era pelos meios de comunicação social. Não fomos informados acerca do plano de reconversão do Bairro. Nós fomos vendo os blocos a serem demolidos, e propagava-se, de boca em boca, que a escola ia fechar. E esse boato propagou-se e muitos dos pais não matricularem os filhos nesta escola […]. Nós sentíamos que os alunos gostavam da Escola! E muitos dos que saíram desta escola ficaram em situação de abandono e absentismo.” (Professora, Escola E.B. 1, 2 S. João de Deus)

“Não houve preocupação em antecipar impactos das decisões; de minimizar danos, nomeadamente sobre as crianças que foram transferidas de forma abrupta, sem um devido enquadramento das escolas durante o ano escolar.” (Assistente social da Fundação Filos)

Termino com as palavras de Anne Lacatone e Jean Philippe Vassal, a dupla que ganhou este ano o Prémio Pritzker de Arquitetura, pelas suas contribuições consistentes e significativas para a humanidade e o ambiente construído: “A transformação é a oportunidade de fazer mais e melhor com o que já existe. A demolição é a decisão mais fácil a curto prazo. É um desperdício de muitas coisas – uma perda de energia, uma perda de material, uma perda de história. Além disso, tem um impacto social muito negativo. Para nós, é um ato de violência.”

[1] Sónia Alves (2017), Assessing the impact of area-based initiatives in deprived neighborhoods: The example of S. João de Deus in Porto, Portugal, Journal of Urban Affairs, 39:3, 381-399; João Queiros (2018), Aleixo. Génese, (des)estruturação e desaparecimento de um bairro do Porto (1969-2019), Edições Afrontamento, Porto

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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