Yuval Noah Harari: “Se Putin vencer, haverá uma era negra de guerra e sofrimento no mundo”

Em entrevista ao PÚBLICO, o historiador diz que, para derrotar a Rússia, o Ocidente deve lançar um “Projecto Manhattan Verde”. “Putin julga que pode escapar impune à sua agressão porque pensa que pode sempre contar com o petróleo e o gás para lhe fornecer dinheiro.”

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Yuval Noah Harari é autor do best-seller Sapiens DR

Escreveu, num artigo de opinião no PÚBLICO, que “a guerra na Ucrânia vai moldar o futuro do mundo inteiro”. O historiador israelita Yuval Noah Harari, autor do best-seller Sapiens —​ História Breve da Humanidade, diz, numa entrevista por email, que “esta guerra é verdadeiramente o trabalho de apenas uma pessoa. Não é a guerra da Rússia, é a guerra de Putin. O sofrimento de milhões deve-se à ambição cruel de uma só pessoa”.

No seu artigo que publicámos há dias, escreveu que Vladimir Putin caminha para uma “derrota histórica”, mesmo que, graças ao poder do Exército russo, ganhe todas as batalhas e consiga conquistar a Ucrânia. Porquê?
Esta guerra é sobre a própria existência da nação ucraniana. A razão de base para toda a guerra é que Putin construiu uma fantasia na sua cabeça: que a Ucrânia não existe realmente, que os ucranianos são apenas russos, que querem ser absorvidos pela Rússia e que apenas um pequeno bando de nazis o impede.

Devido a esta fantasia, Putin pensou que, no momento em que invadisse a Ucrânia, [o Presidente Volodimir] Zelensky fugiria, o exército ucraniano render-se-ia, a população atiraria flores aos tanques russos e a Ucrânia voltaria a fazer parte da Rússia.

Putin estava completamente errado. A Ucrânia é uma nação muito real e corajosa. Zelensky não fugiu. O Exército ucraniano está a dar muita luta. E o povo ucraniano está a atirar cocktails molotov aos tanques russos, não flores.

Ainda podem vir aí dias sombrios. Putin pode ainda conquistar grande parte do país. Mas não será capaz de mantê-lo e absorvê-lo na Rússia. Este era o seu objectivo — e não o alcançará. Ele já perdeu a guerra.

Afirmou, em 2019, que o que acontecesse na Ucrânia nos anos seguintes seria relevante para todo o mundo. Que efeitos veremos no mundo se a Rússia for bem-sucedida?
Se a agressão de Putin vencer, conduzirá a uma era negra de guerra e sofrimento em todo o mundo. Nas últimas décadas, desfrutámos da era mais pacífica da história da humanidade. Desde 1945, nenhum país reconhecido internacionalmente foi varrido do mapa por uma invasão estrangeira. E embora não tenham faltado outros tipos de conflitos, como guerras civis; ainda assim, nas duas primeiras décadas do século XXI a violência humana matou menos pessoas do que suicídios, acidentes de automóvel ou doenças relacionadas com a obesidade. A pólvora tornou-se menos letal do que o açúcar.

Esta era de paz reflectiu-se de forma particularmente clara nos orçamentos dos estados. Nas últimas décadas, governos de todo o mundo sentiram-se suficientemente seguros para gastar uma média de apenas 6,5% dos seus orçamentos nas forças armadas, enquanto gastavam muito mais em educação, saúde e bem-estar. Entre os membros da UE, a despesa média com a defesa tem sido de apenas 3%. Um feito espantoso. Durante milhares de anos, reis, imperadores e sultões gastaram a maior parte dos seus orçamentos com os seus exércitos, ao mesmo tempo que não gastaram quase nada com a educação ou ajuda médica para as massas.

Tal como os antigos reis, Putin construiu a sua máquina de guerra, gastando cerca de 20% do seu orçamento com as forças armadas russas, enquanto negligenciava os serviços públicos para os cidadãos. Se a agressão vencer na Ucrânia, países de todo o mundo serão forçados a imitar Putin. Há muitos ditadores que sonham com conquistas e ficariam felizes em copiar Putin se o virem ter êxito. Também as democracias seriam forçadas a duplicar e triplicar os seus orçamentos militares para se defenderem. Já vimos a Alemanha, por exemplo, duplicar o seu orçamento de defesa da noite para o dia. O dinheiro que deveria ir para professores, enfermeiros e assistentes sociais irá, em vez disso, para tanques, mísseis e ciberarmas.

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Uma nova era de guerra iria também minar a cooperação global sobre problemas comuns da humanidade que são prementes. Não é fácil trabalhar ao lado de países que se estão a preparar para eliminar o nosso. Se Putin vencer, provavelmente levará a uma corrida ao armamento em inteligência artificial e a um colapso dos esforços globais para prevenir as alterações climáticas.

E se Putin perder?
Garantirá uma continuação da era da paz. Países de todo o mundo aprenderão a lição de que a violência não compensa e que se tentarem imitar Putin serão punidos. Os orçamentos militares permanecerão baixos e os de saúde elevados. Qualquer pessoa na Terra terá provavelmente melhores cuidados de saúde e educação.

Na mesma entrevista de 2019, afirmou que no século XXI um país não pode ser bem-sucedido através da conquista de outros e da guerra porque o conhecimento é agora o principal motor da economia — e não território ou recursos naturais. Porque é que a Rússia segue o caminho oposto?
Ao contrário da maioria dos países europeus, a economia russa é construída esmagadoramente sobre recursos naturais. A Rússia é uma estação de serviço com bombas nucleares. Tem petróleo e gás, e quase mais nada. Quando foi a última vez que comprou algo feito na Rússia?

O que quer Putin com esta estratégia?
Putin julga que pode escapar impune à sua agressão porque pensa que pode sempre contar com o petróleo e o gás para lhe fornecer dinheiro. A melhor maneira de derrotar Putin é começar imediatamente um “Projecto Manhattan Verde” ​ ​ [referência ao projecto de desenvolvimento das primeiras armas nucleares, liderado pelos Estados Unidos]. Reunir as melhores mentes e os vastos recursos do Ocidente para acelerar a transição dos combustíveis fósseis para recursos energéticos alternativos. Quando o preço do petróleo se mantiver tempo suficiente abaixo dos 20 dólares americanos por barril, o regime de Putin entrará em colapso.

O Ocidente pode fazê-lo. O Ocidente é muito mais forte do que a Rússia. A economia russa é menor do que a da Itália ou da Coreia do Sul. O PIB da Rússia é de 1,5 biliões de dólares. O da Itália é de 1,9 biliões de dólares; a Europa como um todo cerca de 20 biliões de dólares; se juntarmos os EUA, cerca de 40 biliões de dólares. Se o Ocidente estiver unido, não precisa de temer ninguém.

Escreveu sobre o declínio dos grandes conflitos armados em 21 Lições para o Século XXI. Há alguns anos, parecia muito improvável uma guerra entre grandes Estados. Agora, a Rússia invade a Ucrânia e Putin lembra-nos que tem armas nucleares ao seu dispor. Como é que chegámos a este ponto?
A guerra é sempre uma possibilidade. A era de paz que desfrutámos nas últimas décadas não resultou de qualquer mudança nas leis da natureza. Resultou de os seres humanos tomarem melhores decisões e construírem melhores instituições. Apontar o declínio da guerra não tinha como objectivo tornar-nos complacentes, mas antes responsáveis.

Pensarmos que a guerra faz parte da natureza humana e que o nível de violência no mundo permanece sempre constante liberta pessoas como Putin da sua responsabilidade. Não seria culpa de Putin que haja uma guerra, seria apenas da natureza humana.

Quando se percebe que os humanos conseguiram tornar as guerras muito menos comuns, isso coloca uma responsabilidade muito maior sobre os ombros de pessoas como Putin. Esta guerra é verdadeiramente o trabalho de apenas uma pessoa. Não é a guerra da Rússia, é a guerra de Putin. O sofrimento de milhões deve-se à ambição cruel de uma só pessoa.

Alguns afirmam que a expansão da NATO no Leste da Europa foi arrogante e irresponsável, contribuindo para a guerra. Serão os EUA e outros membros da NATO também responsáveis pelo conflito?
Como pode alguém culpar a NATO quando as bombas russas estão a cair sobre Kiev? A NATO nunca se expande pela força. Os países aderem à NATO porque é o seu próprio desejo e os países desejam aderir à NATO porque se sentem ameaçados. E, quando vemos as imagens da Ucrânia, podemos culpar países como a Estónia ou a Polónia por se sentirem ameaçados? Tinham todos os motivos para ter medo.

Sim, a Rússia também tem as suas próprias preocupações de segurança. Mas há uma forma de as discutir sem iniciar uma guerra desnecessária. Não havia justificação para a invasão. Não houve nenhuma ameaça imediata à Rússia. A NATO não estava prestes a aceitar a Ucrânia como membro. O exército alemão não estava a mobilizar-se na fronteira para uma invasão. A última vez que alguém invadiu a Rússia foi Hitler, há 80 anos, e quem quer exactamente fazê-lo de novo? Acha que os alemães querem invadir novamente a Rússia? É a última coisa que lhes vem à cabeça. Pensa que Napoleão está prestes a levantar-se da sua sepultura para liderar um exército francês até Moscovo?

Toda esta conversa sobre as preocupações de segurança da Rússia é um pouco como um homem que pisa com a bota a cara de alguém e depois diz a quem assiste à cena: “Por favor, compreendam as minhas preocupações de segurança.” Isto é totalmente inaceitável.

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