O desespero dos amarelos

A maior parte das pessoas aqui sentadas não têm seguro de saúde, não pode dar-se ao luxo de se levantar e ir embora e duvido que alguém se lembre de reclamar.

As cadeiras da urgência do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, continuam a ter autocolantes a aconselhar a distância de segurança, prescrevendo um lugar vazio entre duas pessoas, adaptado a tempos covid. O que, se não fosse triste, seria cómico. Todas as cadeiras, com e sem autocolantes, estão ocupadas; os doentes que não se aguentariam sentados foram instalados em macas, há umas sete alinhadas contra a parede; quem não arranjou lugar, acompanhantes e doentes, está sentado pelo chão do corredor, tendo de se desviar sempre que passa uma maca, uma delas conduzida por uma mãe a empurrar o filho que se vê que não tem prática na manobra. “Cuidado com os pés”.

Estamos na sala de espera dos amarelos. O ambiente está quente, abafado e sobrelotado. Ditam as regras da triagem de Manchester, adoptada por este e outros hospitais públicos portugueses, que o amarelo é o terceiro de cinco níveis de gravidade de quem entra em serviços de urgência, a seguir ao vermelho (casos emergentes, cujo atendimento deve ser imediato), e ao laranja (doentes muito urgentes, cujo atendimento não deve tardar 10 minutos). A seguir aos amarelos estão os verdes, casos menos urgentes com atendimento máximo previsto de 120 minutos e os azuis, não urgentes, que podem ser atendidos no espaço de 240 minutos. Os verdes e os azuis poderiam, em teoria, ser encaminhados para outros serviços de saúde.

Os amarelos estão a meio da escala de gravidade, são doentes que necessitam de apoio urgente mas podem esperar: 60 minutos é o tempo previsto.

O que me trouxe hoje à sala dos amarelos foi a minha mãe. Com antecedentes de AVC, apresenta sintomas iguais aos do primeiro episódio, talvez um pouco mais ligeiros, que podem, ou não, significar que se está a repetir a situação de saúde passada. A Linha de Saúde 24 considerou o seu caso suficientemente grave para mandar a casa uma ambulância, que nem nos lembraríamos de pedir. A chegada é rápida, os tripulantes são profissionais e expeditos. Estamos no Hospital de Santa Maria uns 15 minutos depois e pouco esperamos pela triagem. A partir daí o ritmo muda radicalmente, como um filme em fast forward que passa, de repente, para slow motion. A enfermeira da triagem diz-nos que, naquele momento, a espera para as pulseiras amarelas, a que é atribuída à minha mãe, ronda as quatro horas. “Siga a risca amarela no chão e aguarde”.

Na sala dos amarelos somos recebidos pelos gritos de uma senhora claramente descompensada que não consegue deixar de insultar toda a gente que entra, “puta, puta, puta"; uma senhora deitada na maca tem o joelho inchado três vezes o seu tamanho, uma auxiliar de acção médica passa duas vezes a chamar o nome de uma doente chamada Maria da Conceição, para ser observada, sem resposta. Até que se lembra de verificar o nome escrito na pulseira amarela de uma senhora idosa, sozinha e com ar perdido, que está deitada numa das macas e que tirou a máscara. Maria da Conceição não respondeu à chamada porque já não sabe que é Maria da Conceição.

Depois de duas horas sentada, vou conhecendo os vizinhos, um rapaz tem pulseira amarela porque desmaiou na rua e disseram-lhe que era importante investigar o porquê, um jovem está todo curvado sobre si mesmo, tem porte atlético mas parece corcunda e de vez em quando faz um esgar de dor. Uma senhora idosa está numa maca acompanhada pela neta, uma médica jovem abeira-se dela e cerra o punho para imitar o coração da avó que, explica, está envolto num líquido que tem de ser retirado, “tem de ficar cá connosco, mas não temos lugar para ela. Tem de aguardar. Não sei quanto tempo.”

Sr Ernano? É a terceira vez que chamam por este doente. Por via das dúvidas, a auxiliar verifica também o nome na pulseira amarela do senhor na maca encostada à parede do corredor, que está destapado e com a fralda à mostra, e que não fala. Aquele não é o Sr. Ernano mas a auxiliar, num dos vários actos de humanidade que testemunho no pessoal de saúde, aproveita para o cobrir com o lençol. Passaram quatro horas desde que aqui estamos. Pergunto-me a quanto estaria a tensão arterial da minha mãe se alguém lha medisse neste momento, se ainda estaria mais alta do que quando saímos de casa. A espera também adoece. A senhora do joelho aumentado é a única que protesta, “quando é que me vêem?” “Toda a gente que está aqui tem uma razão para aqui estar, princesa”, responde, paciente, uma auxiliar, que alterna o tratamento com “fofinha”.

Passaram agora sete horas desde que aqui estamos sentadas. Uma auxiliar ou enfermeira vem cá fora para anunciar à multidão de amarelos que “o tempo de espera agora passou para dez horas”, dando a entender que quem quiser pode ir-se embora.

Tudo indica que a minha mãe não teve um AVC. Não o soubemos no Hospital de Santa Maria. Depois de dez horas, e não sabendo quanto mais tempo teria de esperar, desistimos. Porque podemos. Em menos de meia hora a minha mãe foi vista no hospital privado que fica a cinco minutos dali. O Serviço Nacional de Saúde costuma ser a primeira porta aonde vou bater em situações de saúde importantes, e sei que quando as coisas são graves é o serviço público, e não o privado, que nos vale, como se viu com a pandemia covid-19.

O Serviço Nacional de Saúde acaba de ser condecorado pelo Presidente da República, que enalteceu o “exemplar ao serviço de Portugal” destacando os “actos e serviços excepcionais prestados, em particular durante a pandemia”. De acordo. E porquê é que não se aplica toda a eficiência demonstrada na pandemia à vida normal? Onde é que está o saquinho de papel com as bolachinhas e a garrafa de água bonita? Onde é que estão os voluntários sorridentes a indicar o sítio onde se sentar e o que fazer? Onde é que está toda a organização demonstrada? E porque é que, sabendo agora nós que tudo isso é possível, nada dessa experiência positiva se nota aqui? Dizer que na covid se quis e quer proteger os mais frágeis é bonito, mas os mais frágeis continuam a esperar dias inteiros sentados numa cadeira de plástico, sem distância de segurança, sem ninguém lhes dar de comer ou dizer quanto tempo ainda mais têm de esperar para lhes aliviarem as dores. A maior parte das pessoas aqui sentadas não têm seguro de saúde, não pode dar-se ao luxo de se levantar e ir embora e duvido que alguém se lembre de reclamar, como eu fiz, para o gabinete.cidadao@chln.min-saude.pt ou gabinete.utente@hsm.min-saude.pt, porque esta é a normalidade que conhecem. Ultrapassadas as dez horas de espera, ficaram na sala todos que não têm escolha, ou que têm medo de ir para casa com as suas dores. Alguns desistem. Talvez tenha sido o caso do Sr. Ernano. O que é feito do Sr. Ernano?

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