A desobediência como arma para travar o “colapso climático”

Francisco interrompeu o discurso do primeiro-ministro, Maria bloqueou a rotunda do Relógio, João tentou entrar sem aviso na refinaria da Galp em Sines, Mariana dá apoio legal aos activistas. Se a situação é de emergência, é preciso desobedecer, acreditam. O PÚBLICO ouviu quatro activistas na linha da frente dos protestos que querem evitar o “colapso climático”.

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Rui Gaudêncio/Público
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“O tribunal decide absolver o arguido, Francisco Pedro, da prática, em autoria material, de um crime de desobediência qualificado.” A decisão do tribunal da comarca de Lisboa, em Fevereiro deste ano, foi conhecida quase três anos depois de Francisco, 35 anos, ter interrompido o discurso do primeiro-ministro num protesto contra a construção do novo aeroporto do Montijo. A manifestação que ocorreu no interior e fora do Centro de Congressos de Lisboa, em 2019, não foi comunicada à Câmara Municipal de Lisboa dois dias antes como obriga a lei, e por isso era ilegal. Francisco Pedro foi o único acusado, identificado por um agente da PSP no local como promotor da acção. Em tribunal, a juíza não deu os factos como provados.

“Estamos a falar de criminalizar uma conduta que é apenas o cumprimento de uma formalidade”, explica ao PÚBLICO Sérgio Figueiredo, advogado em regime pro bono de Francisco. “A manifestação pode ser válida e pacífica”, diz. Esse é um traço comum aos protestos de desobediência e ruptura que marcam o novo movimento ambientalista em todo o mundo: a não-violência. Todas as acções são precedidas de treinos, há grupos organizados de peacekeeping, equipas legais que acompanham as acções. O objectivo é abrir espaço para serem ouvidos, contestando o business as usual. Ser preso faz parte do caminho e da estratégia, na senda de mobilizações sociais históricas como o movimento em defesa dos direitos civis nos EUA.

“Se o que está a acontecer não é legítimo, devemos desobedecer”

O crime de desobediência vem tipificado no Código Penal num decreto de lei de 1974, que regulamenta o direito de reunião e de manifestação. As manifestações até aqui eram “a descida da avenida, muito organizado”, diz Sérgio Figueiredo, “e agora isso mudou”. O advogado defende uma revisão da lei e realça como na leitura da sentença de Francisco Pedro a juíza, não fazendo juízos de valor, acabaria por dar um sinal de que os motivos da manifestação eram válidos, enquadrando a acção na contestação gerada em torno da construção do novo aeroporto no Montijo, nomeadamente por “diversas associações ambientalistas”.

“O constrangimento de actuar dentro da lei significa, em grande medida, a impossibilidade de travar o colapso climático”, acredita João Camargo. Engenheiro zootécnico e do Ambiente, investigador em alterações climáticas, foi jornalista, professor e tem sido voz activa em várias causas, da precariedade laboral à crise climática. Passou pela Liga para a Protecção da Natureza, mas em 2015 ajudou a consolidar o movimento pela justiça climática em Portugal com o grupo Climáximo, que se apresenta como “um colectivo aberto, horizontal e anticapitalista”.

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"Fazer desobediência civil é desconfortável para quem a faz. É desprogramação de toda a nossa vida." O testemunho de quatro activistas

Vera Moutinho

“No movimento ambientalista não havia nenhuma capacidade real de aplicar tácticas e estratégias adequadas à dimensão do problema”, explica. Em 2017, participaram em acções com os alemães Ende Gelände, grupo que mobiliza milhares de pessoas contra o carvão. Estiveram na mina de carvão na Renânia durante a COP23 numa acção de desobediência civil, ao mesmo tempo que em Lisboa faziam uma acção visando a EDP, junto ao Museu da Electricidade. “Fomos, treinámos, participámos, trouxemos essa formação para Portugal”, explica João Camargo. No ano passado, foi um dos activistas que tentaram entrar na refinaria da Galp em Sines, mas acabaram barrados pela polícia.

“Todos os direitos que temos foram conquistados por pessoas que cortavam estradas, faziam acções directas, não se conformavam”, garante Maria Mesquita, 19 anos. A estudante de Estudos Europeus começou nas greves climáticas estudantis, hoje integra o Climáximo. “Essas lutas são hoje absolutamente consensuais na sociedade. Encaro a crise climática com mais urgência, porque não pode ser só daqui a 20 anos.”

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Mariana Gomes, 20 anos, com o computador que é uma das suas mais mportantes ferramentas de trabalho enquando coordenadora da equipa legal do colectivo Climáximo. Francisco Pedro, 35, com um avião de papel, imagem que marcou o protesto em que interrompeu o discurso de António Costa. Rui Gaudêncio/PÚBLICO

Explica que quem participa nestas acções “fá-lo abertamente e explicitamente”. O pai, advogado, acompanha-a em muitos dos protestos para dar apoio jurídico aos manifestantes. Diz que ambos convergem na ideia de que a legitimidade se pode sobrepor à legalidade. “A discussão que queremos não é sobre vírgulas no decreto de lei que foi feito em 1974 – queremos discutir sobre o que está a acontecer e o que é legítimo ou não. Se o que está a acontecer não é legítimo, devemos desobedecer.”

Maria Mesquita é uma das 29 acusadas num outro processo que decorre neste momento contra activistas climáticos, na sequência de uma acção do Climáximo. Foi a primeira vez que foi detida.

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Maria Mesquita, 19 anos e João Camargo, 38, ambos activistas no Climáximo, escolheram as agendas como símbolo da acção. Para o início do Abril já está convocada uma Caravana pela Justiça Climática que vai percorrer cerca de 400 quilómetros em Portugal. Rui Gaudêncio/PÚBLICO

Em Maio de 2021, o protesto Em Chamas juntou centenas de pessoas que pediam o desinvestimento na aviação, numa manifestação comunicada às autoridades. O protesto terminaria com um bloqueio da rotunda do Relógio, em Lisboa, com dezenas de activistas sentados no chão, unidos com tubos nos braços, cortando o trânsito. Foram retirados à força pelas forças policiais: 26 pessoas foram detidas e estão acusadas dos crimes de atentado à segurança rodoviária, desobediência e obstrução da via pública. As três pessoas que promoveram a acção, divulgando-a e comunicando-a às autoridades, também são acusadas, mas os crimes de que poderão vir a ser acusadas podem ser diferentes.

Uma das tácticas de bloqueio consiste numa corrente humana, unido com tubos pelos braços, para aumentar a resistência. RODRIGO ANTUNES/LUSA
O Climáximo tem organizado a maior parte das acções de desobediência civil em Portugal, mobilizando sobretudo jovens. RODRIGO ANTUNES/LUSA
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Uma das tácticas de bloqueio consiste numa corrente humana, unido com tubos pelos braços, para aumentar a resistência. RODRIGO ANTUNES/LUSA

Mariana Gomes, 21 anos, estudante do 3.º ano de Direito e coordenadora da equipa legal da Climáximo foi uma das promotoras dessa manifestação. “Qual é a legitimidade que a polícia tem em interromper uma manifestação legal?”, contesta. “A desobediência não é estar sentada. Torna-se desobediência quando a polícia nos dá uma ordem no sentido de nos retirarmos da via pública”, explica. “Se eu digo que a rua X à Y vai estar interdita das 14h até às 17h, sabe-se que à partida durante aquele tempo as ruas estão obstruídas.”

O processo está na fase de inquérito e poderá ou não haver acusação por parte do Ministério Público. “Provavelmente o objectivo fulcral da Justiça é saber quem organiza, quem é o líder.”

A desobediência contra o nuclear, os eucaliptos, o milho transgénico

Há ecos na história do movimento ambientalista em Portugal da desobediência como arma de protesto. Em 1976, a população de Ferrel, Peniche, na sua maioria pescadores e agricultores, travou a implantação de uma central nuclear, destruindo parte das instalações preliminares.

Em 1989, numa aldeia em Valpaços, Trás-os-Montes, a população juntou-se para destruir 200 hectares de eucaliptal. A acção mais mediática foi em 2007, quando um grupo de activistas invadiu e destruiu parte de um campo de milho transgénico em Silves, na acção Verde Eufémia.

Imagens da acção Verde Eufémia, retirada de um vídeo feito em 2007 pelos activistas para divulgar a acção. Um grupo de algumas dezenas de pessoas cortaram parte de um campo de milho em Silves em protesto contra a introdução do milho transgénico em Portugal. DR
Imagens da acção Verde Eufémia, retirada de um vídeo feito em 2007 pelos activistas para divulgar a acção. O grupo de activistas foi retirado do campo pelo proprietário do campo e pela polícia. DR
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Imagens da acção Verde Eufémia, retirada de um vídeo feito em 2007 pelos activistas para divulgar a acção. Um grupo de algumas dezenas de pessoas cortaram parte de um campo de milho em Silves em protesto contra a introdução do milho transgénico em Portugal. DR

Gualter Baptista esteve debaixo dos holofotes nessa altura, como porta-voz da iniciativa. Apesar de não ter estado no campo de milho, ele e outras duas pessoas foram os únicos acusados dos crimes de dano com violência e de desobediência à autoridade, porque tinham dado os seus contactos à polícia no âmbito da manifestação. Num momento de tensão no campo, um dos activistas deu um pontapé numa das pessoas que tentavam impedir os manifestantes. A destruição do campo de milho transgénico acabaria por ser classificada num relatório da Europol de 2008 como um acto de terrorismo.

O momento de violência “não devia ter acontecido”, admite Gualter Baptista. “Talvez tivesse sido subestimada a tensão que se iria gerar ali com o agricultor.” Vive há quase 15 anos na Alemanha, onde é gestor de projectos informáticos no Deutsche Bahn, os caminhos-de-ferro alemães. Seguiu com atenção o julgamento de Francisco Pedro. Na altura, Gualter não chegou a sentar-se no banco dos réus. Acredita que o discurso e as acções “radicais” denunciam a “emergência dos temas”, mesmo que sejam desagradáveis “para quem quer chegar ao trabalho ou para um agricultor”. “Não são dirigidas a estas pessoas individualmente, têm contexto mais amplo e são nesse sentido justificados”, garante.

Abordagem institucional ou disruptiva?

Se o mediatismo das acções de desobediência abre portas para passar a mensagem, essa é só uma etapa do caminho, reconhecem. “Ser ouvidos significa relativamente pouco, se não há uma acção consequente”, ressalva João Camargo. “As emissões globalmente continuam a aumentar.”

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) deixa o aviso, que já não é novo, na voz de Hans-Otto Portner, vice-presidente do IPCC: “Qualquer atraso adicional numa acção global concertada fará com que percamos a oportunidade de assegurar um futuro habitável.” Os activistas procuram formas de transformar o reconhecimento do problema à escala global em acções concretas, mas os caminhos dividem-se: via institucional ou disruptiva?

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Na Greve Climática Estudantil de 15 de Março de 2019, em Lisboa, muitos jovens saíram à rua pela primeira vez para alertar para a crise climática. Miguel Manso/PÚBLICO

“São trabalhos complementares” mesmo que as estratégias sejam diferentes, defende Islene Façanha, da Associação Zero. Especialista nas áreas de energia e clima, trabalha na construção de pontes com outras organizações. “O Climáximo e outras organizações têm um cariz mais informal”, reconhece. “A Zero é mais institucional, tem dinâmicas mais próximas das políticas públicas, do advocacy”, tentando promover a mudança trabalhando com as instituições do sistema político. “Mas não deixamos de participar em marchas, manifestações.”

Islene Façanha admite, aliás, uma maior cooperação entre as várias organizações e lamenta a criminalização dos protestos: “A desobediência é um acto de resistência, quando o governo se mostra insuficiente.”

João Camargo não estranha as acções judiciais, “o sistema protege-se”, diz. Mas realça as contradições que os próprios processos evidenciam: “As leis e as instituições que foram criadas para a normalidade correspondem a uma normalidade que já não existe. Sem a acção não chegamos lá.”

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