Não há vida sem violência

Seria interessante saber se as gerações mais velhas, que agora se manifestam na rua pela paz, foram as mesmas que não estiveram na rua pela mesma paz, quando a NATO, em 1999, bombardeou a Jugoslávia durante 78 dias consecutivos. Quantos estiveram nas ruas a chorar por Belgrado?

Não há muito a dizer sobre o conflito armado entre Rússia e Ucrânia: tratando-se de uma invasão a um país soberano, é uma ingerência inadmissível e, deste modo, condenável. O facto de o Partido Comunista Português não ter expresso uma condenação clara, remetendo-a antes para um contexto mais abrangente, deixa isolados os comunistas portugueses, fragiliza os seus militantes e expõe-nos à censura alheia: um laxismo, patetice, casmurrice e embrulhada colossais. A Rússia não é a URSS – com tudo o que a URSS tinha de pouco recomendável –, e, bem se sabe, é também um país capitalista, de oligarquias bem documentadas, estratificação social, ricos e pobres. Para quê defender aquilo?

As manifestações em defesa da paz são, sobretudo, manifestações anti-Rússia, mesmo quando haja quem exiba cartazes de Vladimir Putin. Décadas de propaganda contra a Rússia têm este efeito de ódio fácil a um país que, na realidade, poucos conhecem (alguém viu o belíssimo filme Alexandra, de Alexandr Sokurov, para se observar como alguns russos vêm o despropósito da guerra?). O mundo ocidental de que Portugal faz parte não é o do paradigma da antiguidade greco-latina, mas o da pax americana. Tendo aderido à NATO – organização que, sendo legal, perdeu a legitimidade moral de existir pelo ocaso do Pacto de Varsóvia –, Portugal é um lacaio dos interesses da economia e das finanças dos EUA, como de resto boa parte dos países europeus. O ministro da Defesa português nada mais faz do que despejar os cinzeiros dos falcões da guerra norte-americanos. Chega a ser constrangedor ouvir João Gomes Cravinho e Augusto Santos Silva pronunciarem-se sobre este conflito armado: títeres, dizem o que lhes mandam dizer. Convém referir que, sob este pretexto, Cravinho já anunciou o reforço do investimento militar, o que significa na prática o nosso contributo para o reforço do PIB norte-americano (inglês e alemão, porventura), maior endividamento e um inestimável passo na defesa da paz. Não há vida sem violência.

Seria interessante saber se as gerações mais velhas, que agora se manifestam na rua pela paz, foram as mesmas que não estiveram na rua pela mesma paz, quando a NATO, em 1999, bombardeou a Jugoslávia durante 78 dias consecutivos, naquela que foi a primeira agressão a um país soberano, no continente europeu: nessa altura, caças e bombardeiros utilizavam a base das Lajes dos Açores para lançarem o terror nocturno sobre Belgrado e toda a região da Sérvia jugoslava – 23 mil bombas e mísseis, correspondentes a 6,3 mil toneladas de bombas (entre as quais, bombas de urânio), foram descarregadas sobre a Jugoslávia, sob o pretexto de que os sérvios haviam massacrado civis de etnia albanesa. Sabe-se que as bombas de urânio empobrecido foram responsáveis pelo aumento da taxa de cancro na região da Sérvia que, vinte anos depois, ainda se faz sentir. Um juiz sérvio condenou, à época, a direcção da NATO, bem como Bill Clinton, Tony Blair e Madeleine Albright, tendo a sentença sido anulada pelas autoridades sérvias em 2001, “sob pressão do Ocidente”. Quantos estiveram nas ruas a chorar por Belgrado?

O conflito actual tem várias explicações, várias já apontadas: a demência de um perigoso megalómano, Putin; a expansão da região de influência da Rússia; a manutenção do dólar como moeda de câmbio internacional, o que os russos pretendem impedir; o controlo militar da Europa pelos EUA, com forte resistência da Rússia, cada vez mais ameaçada; a questão energética, que possibilita aos EUA controlar o mercado europeu (recorde-se que a Rússia colocava gás na Europa a 1/3 do valor do gás norte-americano); a garantia de uma cinta de países não-alinhados em torno da Rússia, facto que os EUA procuram impedir; a escalada de tensão entre NATO e Rússia, com fornecimento militar simultâneo de separatistas pró-russos e ucranianos nacionalistas. Agora a sério: alguém acredita ainda que há os bons e os maus?

A paz pode ser buscada de várias formas, mas, seguramente, não é o robustecimento bélico que a favorece. Portugal, alinhado com os EUA na NATO, é um país que não promove a paz e, ainda que não envolvido activamente em nenhum conflito, é para todos os efeitos um país de natureza beligerante. Promover a paz seria abandonar o tratado de Washington, o que, a haver provas dadas de inteligência, deveria estender-se à prática europeia, dado o seu antecedente histórico. Para Washington, não é muito problemático que as novas guerras se travem na Europa. Seria hipocrisia pensar que os EUA, arreigados à sua ofensiva esmagadora da ideologia de mercado, querem o bem-estar dos europeus. Lembremos que foram eles quem cometeu os dois maiores actos de barbárie da humanidade: em 6 de Agosto de 1945, a bomba nuclear (Little Boy, como lhe chamaram) lançada sobre Hiroshima; três dias depois, em 9 de Agosto, a bomba nuclear (esta chamada Fat Man) lançada sobre Nagasaki.

Quando o facínora do Putin assusta o mundo com uma ofensiva repugnante e inclassificável, como a da sugestão ao recurso a armamento nuclear, não faz nada que a humanidade, numa escala menor, não tenha já provado. Apetece mostrar a Putin a fotografia de Eddie Adams, tirada em Saigão e que lhe valeu o Pullitzer, e dizer-lhe que aquilo era justamente o que merecia. Não, não há mesmo vida sem este terrível impulso. Nem paz, sem vencidos nem vencedores.

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