Lucro, especulação e fósseis aumentam preços da energia
Os preços elevados actuais não foram provocados por uma escassez fundamental de energia e já precediam até as tensões anteriores à invasão da Ucrânia.
É difícil ficar indiferente à subida dos preços da energia nos últimos meses. Dos vários argumentos trocados, dir-se-ia que os preços podem e são afectados pelas mais pequenas oscilações (e pelas maiores também), como se a formulação de preços correspondesse a regras rígidas de Física newtoniana. O gás da Rússia, a invasão da Ucrânia, a seca no Mediterrâneo, a recuperação económica depois da contração produtiva, a expansão das renováveis, a rigidez dos mercados, dizem uns, a flexibilidade, dizem outros, os contratos ruinosos, taxas de carbono e por aí fora explicariam tudo o que se passava até há pouco. Mas a famosa “lei” da oferta e da procura, alfa e ómega das justificações, não nos pode iludir sobre a razão principal da oscilação dos preços: a remuneração das empresas produtoras, construídas e mantidas não para produzir ou distribuir energia, mas sim para extrair e concentrar lucro. Enquanto os preços bateram recordes, os lucros históricos das petrolíferas também - e são fenómenos estritamente conectados.
Toda a economia mundial foi deliberadamente viciada em combustíveis fósseis. Este controle da energia permitiu que os donos da indústria guiassem todas as opções civilizacionais, tecnológicas e sociais que mantiveram e expandiram esse controle. Isso incluiu usar exércitos e polícias para garantir acesso a recursos ou canais de escoamento (no que uma vez mais parece estar a acontecer com a invasão de Putin), suprimir tecnologias não-fósseis e eliminar qualquer legislação que limitasse lucro no sector, desenhar o sistema de transportes da curta à longa distância, construir infraestruturas e redes concebidas para séculos de utilização de energias fósseis. Estamos a falar do poder político e económico mais poderoso da história da Humanidade – o capitalismo global baseado em combustíveis fósseis.
Construir e controlar esse monopólio sem dele extrair todas as vantagens seria obviamente absurdo. O preço é a forma mais óbvia de exercer o direito dessas vantagens. E por isso, se há impactos reais provocados por alterações materiais reais de uma matéria-prima – a falta de acesso a um hidrocarboneto, uma seca que impede a produção de energia hidroelétrica, uma oscilação no consumo, uma guerra – a ferramenta para garantir o que estes capitalistas exigem, o lucro, é a alteração de preços. Fazem-no de formas concertadas, através de cartéis, mas também formas coordenadas, através de governos e entidades gestoras, pretensamente independentes, mas que apenas são independentes do escrutínio público.
A ossificação do privilégio dos donos do sistema energético está presente na arquitetura internacional, na Organização Mundial do Comércio, nos tratados comerciais como o Tratado da Carta da Energia, mas também na organização dos mercados regionais como o europeu ou o ibérico. Os antigos mecanismos de regulação de preços foram desmantelados e a velocidade no fazer refletir impactos reais nos preços depende somente da vontade dos acionistas e das administrações – e sabemos perfeitamente como ao longo das últimas décadas a escassez de produção petrolífera sempre fez aumentar os preços da gasolina e do gasóleo, enquanto a sua abundância raramente os fez descer.
Neste momento vivemos um período em que convergem vários factores reais que têm impactos reais na capacidade de produção de energia – a invasão da Ucrânia, o frio mais intenso em certas zonas da Europa, a redução no fornecimento de gás (no qual a União Europeia deliberadamente se viciou para salvar a sua indústria fóssil), a seca no Sul da Europa e um aumento da actividade industrial, assim como alguma transformação energética com um aumento de renováveis – mas os atuais altos preços não foram provocados por uma escassez fundamental de energia e já precediam até as tensões antes da invasão.
Os mercados de energia internacionais estão sujeitos ao pior da financeirização, e isto tem consequências. Em especial no mercado petrolífero, vários investidores têm apostado em derivados financeiros que apontam para valores bem acima dos 100 dólares (frequentemente através de compras automatizadas). Com a escalada dos preços, os bancos – contrapartes nestas apostas – cobrem a sua posição, comprando petróleo. Isto conduz a preços mais altos, que por sua vez força novas compras para cobrir posições deficitárias, numa espiral que se está a tornar numa explosão de preços. Assim, dá-se o oposto da situação de 2020, em que os preços nos mercados de futuros chegaram a valores negativos. O regime de altos preços é mais do que conveniente para alguns, com recordes de cash flows por parte das grandes petrolíferas a mostrar que o setor se encontra poderoso como sempre, mesmo quando sabemos que é necessário acabar de vez com os combustíveis fósseis nos próximos 20 anos e cortar mais de 50% das emissões até ao final da década.
A vitalidade da indústria fóssil também se reflete na continuação de argumentos absurdos. A recente investida contra as renováveis, por parte do ex-director da DGEG, em artigo no Observador, defendendo a manutenção do carvão, serve dois propósitos. O primeiro, já clássico, corresponde à agenda política de estender mais uns anos o lucro dos fósseis. O segundo, mais recente, é conseguir imputar a um falso culpado as consequências devastadoras da presente seca na Península Ibérica, evitando apontar o dedo à verdadeira causa – as alterações climáticas geradas pela queima de combustíveis fósseis, com os quais os acionistas têm lucrado anos a fio. Cada vez mais, devemos esperar este tipo de falsos argumentos, com o agravar das consequências da crise climática, que se farão sentir em cada vez mais lugares e com cada vez maior frequência. A responsabilidade histórica e criminosa das produtoras de combustíveis fósseis será sempre negada pelas mesmas.
Não nos devemos enganar sobre a transformação que está a acontecer – se em Portugal até pode parecer que fósseis estão a ser substituídos por renováveis, isso não é uma realidade para o mundo. Todas as fontes de energia continuam a aumentar, incluindo fósseis, e é por isso que as emissões continuam a subir. As renováveis não estão substituir fósseis - petróleo, gás e carvão - portanto não há uma contração da produção e nada relacionado com a disponibilidade de energia justificaria a subida de preços (pelo contrário, justificaria amplamente a sua redução, se os preços não fossem uma ferramenta política para exercer poder e tirar vantagem dele).
O desenho dos mercados virado para os lucros das multinacionais permanece. Os mercados de energia de formação de preço marginal – em que a energia mais cara na rede é a que determina o preço da restante -, permite que quem comercializa as renováveis mais baratas lucre com a presença das energias fósseis caras. Assim, para quem quer lucrar selvaticamente com a venda da energia renovável, a presença de fontes fósseis torna-se mais do que desejável. Quando a mesma empresa concentra fósseis e renováveis (como quase todas fazem), a entrada de um só kilowatt de gás no sistema faz com que a electricidade no seu conjunto fique muitíssimo mais cara. No caso português e espanhol não há qualquer dúvida - são os fósseis que estão a fazer com que o preço da electricidade fique como está e enquanto houver centrais fósseis a energia vai ser mais cara.
Há outra questão que se soma – o modelo energético com renováveis preconizado por João Galamba e João Matos Fernandes, baseado em boa medida no modelo fóssil, com grandes centros de produção e distribuição, que garantem novos monopólios, sem assacar responsabilidade às empresas fósseis e na verdade entregando à EDP, à Galp e aos seus spinoffs - EDP Renováveis, Greenvolt ou Galp New Energies - o controlo futuro da energia como bem coletivo. Eles fazem dinheiro com todas as fontes de energia. A sua margem, o seu lucro, deve manter-se intacta: através de preços, através de subsídios públicos, através de financiamento público, de acesso a linhas de crédito. Os Estados (e associações de Estados) organizam-se em boa medida para garantir que os direitos de lucro dos acionistas das empresas estão sempre garantidos. Permitir que as empresas determinem os preços é entregar-lhes essa decisão. Com conflitos como o atual, estas empresas exigirão o apoio do Estado e imputarão todos os custos - incluindo em grande medida a manutenção do seu lucro - a quem tem de usar energia todos os dias, ao conjunto da população.
Por isso, haverá sempre uma explicação papagaiada por um rol de comentadores e consultores para justificar preços altos. Seguramente que, se houver uma verdadeira transição energética, ela será fortemente atacada por estes agentes privados, pela simples razão que travar a crise climática não implica simplesmente fazer mais renováveis, mas efectivamente acabar com os fósseis, substituir uma fonte por outra em vez de expandir a produção – o que implica destruir capital em grande escala e tornar investimentos fósseis feitos nas últimas décadas em activos encalhados, tirando também as renováveis do casino da especulação. O objetivo de travar a crise climática não é manter ou aumentar os lucros do capitalismo global, é travar o colapso.
Fora do controlo público, o que as empresas energéticas privadas farão sempre é manter os seus lucros e compensar as suas perdas através de várias ferramentas, a principal das quais são os preços. Fá-lo-ão sempre que isso lhes for permitido. Portanto, em capitalismo, qualquer transição, mesmo que incompleta, será paga pela sociedade através de aumentos de preços. Os capitalistas nunca pagarão nada ou abdicarão de 1 euro dos seus lucros para travar o colapso. Não será com eles, mas contra eles que será possível uma transição.
Hoje temos os preços determinados pela necessidade de manutenção de lucros e pela selvajaria dos mercados que ajudam ao frenesim da especulação. As empresas, com o apoio dos Estados, transferirão sempre o custo para as populações, ignorando o impacto social da necessidade de encerrar infraestruturas fósseis e aproveitando-se da fragilidade dos trabalhadores para fazer a apologia da continuação da queima de petróleo, gás e carvão. Assim que estas empresas receberem um apoio público, despedirão os trabalhadores sem qualquer hesitação. Perante uma invasão militar que também tem motivações ligadas à energia - e o gás russo, a disputa com o gás de fracking americano e o resgate europeu aos fósseis está associado ao que se está a passar - as energias fósseis exigirão uma vez mais ao estado um resgate com o nosso dinheiro, para depois nos cobrarem preços cada vez mais altos, precipitando o colapso climático.
Qualquer transição consequente implica a resposta a necessidades essenciais e não a consumos de luxo (ou de aberrações produtivas) e o controlo público sobre a produção e a infraestrutura energética, num modelo o mais descentralizado e resiliente possível, que sirva populações e não acionistas.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico