Limpem as lágrimas. A Ucrânia foi abandonada por todos

A situação actual é a razão pela qual o Presidente Zelensky pediu com tanta insistência a entrada do seu país na NATO. Não era para provocar a Rússia – era para se defender dela.


Militarmente, a Ucrânia está perdida, porque se sabe há décadas que sem o controlo do espaço aéreo não há resistência duradoura, a não ser que existam montanhas imponentes (do tipo afegão) ou selvas cerradas (do tipo vietnamita) onde se possa armar uma guerra de guerrilha. A Ucrânia só tem montanhas na zona dos Cárpatos, junto à fronteira ocidental, e quase tudo o resto são planícies férteis, óptimas para cultivar cereais e para divisões blindadas galgarem centenas de quilómetros por dia, como se comprovou em 1941. Há sempre a opção de enveredar pela guerrilha urbana, claro está, mas o único resultado seria a destruição das grandes cidades, de forma tão heróica quanto inútil.

Os ucranianos estão sós. O mundo ocidental informou em devido tempo que podia enviar armas mas jamais colocaria botas no chão, e por isso o destino da Ucrânia estava totalmente dependente dos humores de Vladimir Putin e do seu atrevimento. Essa é a razão pela qual o Presidente Zelensky pediu com tanta insistência a entrada do seu país na NATO. Não era para provocar a Rússia – era para se defender dela. Até que chegou o dia em que Putin se atreveu mesmo, para grande estupefacção de uma Europa que já não via nada assim há muito tempo, e, portanto, pensava que nunca mais voltaria a ver.

A comoção dos europeus é genuína, tal como a sua indignação. Aliás, só mesmo um partido como o PCP, que nunca deixará de ser geneticamente estalinista, é que não percebe o quanto o mundo mudou, e quão politicamente inaceitável é a sua recusa em condenar a invasão da Ucrânia. Há um mês escrevi que António Costa é o político com mais sorte do mundo. Continua a ser: sem uma maioria absoluta, estaria agora obrigado a explicar todos os dias ao país como é que podia liderar um governo suportado pelo PCP, vergonhosamente disponível para compreender o senhor Putin e as suas motivações. Em nome, claro, da “paz”.

Mas se a comoção e a indignação europeias são genuínas, elas também são inúteis, e, da perspectiva ucraniana, bastante hipócritas. Chorar da varanda pelo que se está a passar na rua pode aliviar o coração e abrilhantar as redes sociais, mas não resolve o problema ucraniano, nem, em bom rigor, o problema russo, porque esta invasão será certamente acompanhada de uma escalada da autocracia em Moscovo, com reflexos nos já de si muito vagos vestígios de democracia no país. Putin parece mais disposto do que nunca a dar o pequeno salto que separa o autocrata do ditador, e assumir de forma ostensiva a sua guerra contra as democracias liberais. Não nos enganemos: a grande ameaça ucraniana para Putin nunca foi a NATO, mas a possibilidade de Zelenskiy construir uma democracia funcional e próspera, que viesse a pôr em causa o regime de Moscovo.

Em 1994, a Rússia, os Estados Unidos e o Reino Unido (e parcialmente a China e a França) subscreveram o Memorando de Budapeste, que oferecia totais garantias de segurança e respeito pela independência e integridade territorial da Ucrânia, em troca da cedência do terceiro maior arsenal nuclear do mundo. A Ucrânia entregou as bombas, e 28 anos depois tem os tanques russos em Kiev. Poupemos, pois, nas lágrimas: o Ocidente abandonou conscientemente a Ucrânia. As democracias ocidentais acreditaram que a paz perpétua tinha chegado à Europa, e foram permitindo a Putin pisar linhas vermelhas atrás de linhas vermelhas. As intenções eram boas. O resultado é o fim da Ucrânia e o início de uma segunda Guerra Fria.

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