O barato torna-se muitas vezes demasiado caro

Uma abordagem historiográfica acerca da actual situação na Ucrânia e na Federação Russa

Nas comunidades humanas ocorrem fenómenos — naturais ou sociais — geradores de dificuldades e de sofrimento ou morte que são inesperados e desconhecidos. Face a estes processos, restaria recolher informação e atenuar, tanto quanto possível, as sequelas decorrentes dos mesmos. Menos compreensível é, no entanto, que sociedades estruturadas com base num conhecimento sofisticado e extensivo da realidade passada e presente permitam conscientemente a eclosão de crises muito graves cuja prevenção conseguiriam e teriam substanciais vantagens em assegurar. As implicações do modo como a Federação Russa se tem relacionado com a Ucrânia desde 2014 são um exemplo dramático deste segundo conjunto de situações.

Defendo, em primeiro lugar, que a Federação Russa (país cujo território se estende do Mar Báltico ao Oceano Pacífico, ou seja, por todo o norte da Eurásia; detentor do segundo maior arsenal de armas nucleares e de uma das três mais poderosas Forças Armadas do Mundo) e a Bielorrússia são Estados europeus nos quais vigoram ditaduras pós-comunistas. Por sua vez, a Ucrânia, os trinta países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte e os vinte e sete Estados membros da União Europeia adoptam maioritariamente regimes de tipo democrático. Excepções a esta hegemonia ocorreriam na Hungria, na Polónia e na Turquia, onde se verificam derivas populistas e autoritárias ou, mesmo, a estruturação de um figurino ditatorial. Os vocábulos ditadura e democracia são aqui utilizados enquanto conceitos, e não na qualidade de adjectivos.

Lembro, em seguida, que desde o início da década de 1990 — no pós-Guerra Fria — o Mundo deixou de estar organizado, no essencial, em torno da dissuasão nuclear, do bloco liderado pelos EUA (de governação multilateral e unilateral, de economia de mercado, com regimes de tipo democrático e com ditaduras) e do bloco chefiado pela URSS (de governação sobretudo unilateral, comunista, com ditaduras). Nestes anos mais recentes, o sistema de relações internacionais tende, no essencial, a coincidir com a economia-mundo capitalista (China e Federação Russa incluídas). Tem o mesmo sido unipolar, multipolar e/ou bipolar, assistindo-se à adopção de lógicas tanto unilaterais como multilaterais. Observam-se, ainda, quer a consolidação de soluções ditatoriais quer processos de crise de regimes de tipo democrático (nomeadamente em países com a relevância dos EUA, da Índia e do Brasil) e de implantação ou de reforço de democracias.

Antes de mais, nos EUA e no Canadá, nos Estados-membros da Comunidade Económica Europeia — depois União Europeia — e da European Free Trade Association (EFTA), no Japão e na Austrália, sabe-se como foram diferentes as implicações dos quase opostos modos de governar o pós-Grande Guerra e o pós-Segunda Guerra Mundial. Entre 1919 e 1945 assistiu-se à hegemonia do unilateralismo e do colonialismo, de um marginalismo proteccionista e do corporativismo, de crises socioeconómicas e ideológico-políticas, de ditaduras e de violência de massas, do militarismo e do apaziguamento, de conflitos militares e de genocídios.

Pelo menos nos países capitalistas desenvolvidos e de desenvolvimento intermédio, de 1945 ao final da década de 1980 verificou-se o predomínio do multilateralismo e do reconhecimento do direito à autodeterminação e à independência, do keynesianismo e da globalização negociada (baseados nos Estados-Providência e no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), do crescimento económico e do desenvolvimento, do aprofundamento da democracia e da defesa dos direitos humanos. Nos países capitalistas subdesenvolvidos e nos Estados comunistas a realidade foi substancialmente diversa.

Os cidadãos e as organizações das sociedades civis, os partidos políticos e a comunicação social, os Governos e os aparelhos de Estado dos países capitalistas centrais e semiperiféricos conheciam, pois, os perigos de, a partir de 1991, não apoiar, de modo sistémico, iniciativas dos segmentos das sociedades civis e dos sistemas políticos da Federação Russa e de outros Estados resultantes do fim da URSS que visassem a implantação e a consolidação de regimes democráticos. Aquele objectivo foi, também, muito prejudicado pelas consequências do emergir da hegemonia do monetarismo e da globalização neoliberal, cujas receitas económicas e sociais foram aplicadas na ex-URSS com particular brutalidade; pela natureza unilateral da postura norte-americana durante as primeiras décadas do pós-Guerra Fria e pelo carácter arbitrário e não operatório das intervenções militares dos EUA e de outros Estados em países como o Iraque e o Afeganistão, a Líbia e a Síria.

Em nada esta hipótese de análise contribui para atenuar o risco actual de a Ucrânia ser uma vez mais invadida pela Federação Russa ou de o potencial conflito militar em causa alastrar ao resto da Europa e do Mundo (para já não referir a sempre latente ameaça de recurso às armas nucleares). Talvez possa, no entanto, juntar-se a vozes que têm defendido que os Estados-membros da União Europeia deveriam acordar e aplicar as reformas que permitiriam àquela entidade tornar-se um actor global significativo; que, nomeadamente os países desenvolvidos e de desenvolvimento intermédio com regimes democráticos, deveriam passar a actuar, de forma coerente e assertiva, em defesa da democracia e do multilateralismo, dos direitos humanos e de uma globalização negociada, da governação do capitalismo segundo os pressupostos do keynesianismo e do estruturalismo, de um desenvolvimento mais integrado e sustentável à escala mundial.

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