A guerra suspensa e o conflito que permanece

Ao reconhecer a independência de Lugansk e Donetsk, Moscovo adquiriu um território tampão, a separar a Rússia de uma Ucrânia cada vez mais alinhada com o Ocidente. E lá se apresentará como força de manutenção de paz, e não como invasora.

A crise ucraniana nem é uma crise nem é apenas ucraniana. Está por definir o rótulo consensual para as hostilidades, mas certamente não será nem pode ser o de mera crise. A uma crise na qual já morreram 14.000 pessoas, segundo fontes da ONU, em resultado de confrontos armados entre a Rússia e a Ucrânia só se pode chamar guerra. O conflito provém da expansão da NATO para a Europa de leste na década de noventa, contudo a guerra começou, em 2014, aquando da anexação da Crimeia por parte da Rússia e da sua intervenção militar não assumida na região de Donbass, mais especificamente nos territórios separatistas de Lugansk e Donetsk da Ucrânia oriental.

Com o reconhecimento da independência dos citados territórios por parte de Moscovo e sendo improvável a retaliação ucraniana, a guerra chegou a um desfecho interino. O Presidente russo escolheu o momento e impôs o método. Assim, a mobilização mais recente de tropas russas junto à fronteira ucraniana foi menos o prenúncio de guerra – a qual se mantém, de facto, desde 2014 – do que uma ameaça de escalada na violência. A demonstração de força recente por parte da Rússia visava desestabilizar a Ucrânia como um todo e não apenas as suas regiões a leste, suscitando ainda um clima de emergência perante o qual atores interessados – os estados da NATO e sobretudo os Estados Unidos da América (EUA) - jamais se poderiam manter alheios. Seriam forçados a tomar posição face às duas dimensões do conflito.

A primeira dimensão passava pelo interesse da Rússia em forçar a liderança ucraniana a aceitar a autonomia da região de Donbass, impedindo por essa via a formação de um consenso alargado em relação à adesão à NATO e acautelando os interesses da Rússia. Embora esses interesses nem sempre sejam realçados, passam, entre outros objetivos, por tentar impedir uma homogeneização do ucraniano face ao russo e por contestar uma reinterpretação histórica do papel da Rússia nesse espaço. A liderança russa pouco tem escondido essas metas, publicando mesmo um ensaio no verão a aclamar os (supostos) laços fraternos entre as duas nações.

Para além das visões diferentes em relação ao futuro específico da Ucrânia, resta a segunda dimensão do conflito ligado ao reordenamento do espaço transatlântico, o qual foi alvo de uma profunda alteração geoestratégica, desde o fim da Guerra Fria. Em conjunto com a expansão da NATO, a saída unilateral dos EUA do tratado de mísseis antibalísticos, em 2002, seguida pela não renovação do tratado de mísseis de alcance intermédio, em 2019 - ambos conhecidos pelos respetivos acrónimos anglo-saxónicos, ABM (anti-ballistic missile treaty) e INF (intermediate nuclear forces treaty) -, causou incerteza em relação ao futuro geoestratégico da Europa e provocou também uma nova corrida às armas. Dentro desse contexto, os EUA permitiram a criação de uma armada de mísseis defensivos, agudizando o clima de desconfiança vigente. Sobressai a tentativa de continuar a subalternizar da Rússia, algo que não deve ter também agradado aos dirigentes em Moscovo.

Em suma, a guerra no território ucraniano reflete duas dimensões: antagonismo russo-ucraniano em conjunto com o contexto geoestratégico europeu e transatlântico. A Rússia jamais aceitaria a integração ucraniana nesse espaço, pretendendo também um recuo ostensivo de forças NATO, independentemente do seu alegado propósito defensivo. Nesse sentido, os EUA (e os seus aliados europeus) optaram por pressionar a Ucrânia, embora de modo indireto. Sem nunca reconhecer a legitimidade das exigências russas e sem questionar a soberania da Ucrânia, esta manteve-se, de facto, isolada. Fruto da pressão ostensiva russa e dos alertas dos EUA e respetivos aliados, uma recessão económica em resultado de pressão internacional visava forçar a Ucrânia a declarar neutralidade sem que a NATO alterasse os seus critérios de adesão e o ordenamento geoestratégico vigente.

Todavia, em resultado da intransigência ucraniana e para aplacar contestação nacionalista interna, Moscovo ripostou ao reconhecer formalmente, esta segunda-feira, a independência de Lugansk e Donetsk. Perdeu capacidade de influenciar diretamente a política interna ucraniana, mas adquiriu um território tampão, separando a Rússia de uma Ucrânia cada vez mais alinhada com o dito “Ocidente”. E continuará a ter influência indireta, uma vez que a ausência de reconhecimento internacional dos territórios de Donbass resultará num imbróglio político, económico e administrativo, de que Moscovo procurará tirar proveito. Mais importante, a questão do alargamento da NATO, pelo menos no futuro próximo, ficou resolvida, já que os aliados transatlânticos jamais aceitarão a adesão de um estado incapaz de exercer controlo formal e efetivo sobre a totalidade das suas fronteiras e em estado de guerra.

E se isso não fosse suficiente, sem conseguir reordenar o espaço geoestratégico europeu, a Rússia conseguiu também fragilizar os EUA e aliados. Após várias visitas a Moscovo e esforços diplomáticos, a ameaça, afinal, não era a de uma invasão, mas sim a de uma operação de paz. Não foram beligerantes, mas sim “peacekeepers”, segundo a Rússia, a entrar no território ucraniano.

No entanto, a paz é ténue. Uma Ucrânia dividida não oferece certezas em relação ao futuro da região e o ordenamento geoestratégico europeu não sofreu nenhuma alteração substancial. A guerra ficou suspensa, mas o conflito permanece.

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