As grandes farmacêuticas devem deixar de criar obstáculos a África na produção das suas próprias vacinas

Mudar o actual cenário exige, no mínimo, a vontade das empresas farmacêuticas globais de estabelecerem verdadeiras parcerias que transfiram as capacidades de investigação, desenvolvimento e fabrico para parceiros africanos. Exige a vontade de partilhar os mercados e, consequentemente, os lucros.

Aos poucos, e já não era sem tempo, parece que a perspectiva global sobre como os governos devem responder à actual pandemia de covid-19 está a expandir-se. Na Cimeira União Europeia-União Africana, que decorre esta semana em Bruxelas, continuou a não ser possível entregar as vacinas suficientes a África. Mas, para além da necessidade urgente de vacinas, existe um “ambicioso Pacote de Investimento África-Europa", que incluirá medidas para enfrentar os desafios no sector da saúde.

Existe uma tensão inerente. Existe um interesse comum em assegurar um maior apoio aos países de baixo e médio rendimento em resposta à pandemia. Contudo, os líderes africanos querem acabar com o que tem sido uma dependência excessiva da ajuda externa e dos fornecedores. Têm pressionado para garantir a segurança sanitária e a autonomia do seu próprio continente o mais rapidamente possível, inclusive através do desenvolvimento da própria capacidade do continente para desenvolver e fabricar vacinas e outros bens essenciais para a saúde.

Mas tudo isto vai precisar de mais do que acção governamental. O sector privado precisa de acelerar – e de mudar as mentalidades existentes para responder à onda de mudança que se avizinha.

A própria dimensão da procura em África é, por si só, uma oportunidade para os líderes empresariais. Em conjunto, a África representa 25% da procura mundial de vacinas, mas, mesmo sem qualquer pandemia, importa para satisfazer 99% da sua oferta de rotina. Em termos mais gerais, os países africanos importam 94,8% das suas necessidades farmacêuticas de fora do continente.

Mudar este cenário exige, no mínimo, a vontade das empresas farmacêuticas globais de estabelecerem verdadeiras parcerias que transfiram as capacidades de investigação, desenvolvimento e fabrico – o know-how e as ferramentas – para parceiros africanos. Exige a vontade de partilhar os mercados e, consequentemente, os lucros.

Isto não vai acontecer de forma espontânea. Para as empresas orientadas em proporcionar retornos aos accionistas, os incentivos são concentrados a favor da manutenção do controlo – na maioria das vezes vendendo vacinas sobretudo através de iniciativas de beneficência, como a COVAX, em vez de abdicarem do controlo sobre as suas patentes. Vimos a mesma determinação em permanecer no controlo dos medicamentos retrovirais de marca utilizados para combater o VIH/sida – até que a Índia e a África do Sul tenham feito uma engenharia inversa das patentes para produzir alternativas genéricas.

Mesmo sem que a OMC concorde com uma renúncia à patente, que muitos países do G7 estão resolutamente a bloquear apesar das aberturas da União Africana, parece provável que o mesmo venha a acontecer com vacinas de mRNA – deixando as grandes farmacêuticas a colher outra vaga de ressentimento e desconfiança.

A alternativa é possível. Acabámos de ver os criadores da Corbevax disponibilizarem essa vacina para produção sem patentes ou contrapartidas, e desenvolverem parcerias na Ásia e em África. As empresas que avançam agora para expandir o acesso às vacinas – antecipando-se à regulamentação ou compulsão governamental – acabarão por beneficiar não só a luta global contra este terrível vírus, mas também os seus accionistas, ao estarem mais bem posicionados em mercados adicionais.

Para alguns, isto exigirá uma mudança para novos modelos de negócio que assegurem acessibilidade e acesso – que possam satisfazer a procura de uma classe média africana em rápido desenvolvimento.

Os financiadores concessionais e investidores de impacto social têm aqui um papel a desempenhar – a Open Society Foundations, por exemplo, juntou-se a outros financiadores filantrópicos e investidores de impacto social para adquirir a Mologic, uma empresa britânica líder no desenvolvimento de testes rápidos à covid-19 a baixo custo – com o objectivo de expandir uma parceria de produção existente com o Instituto Pasteur Dakar do Senegal para outras geografias, incluindo o Sudeste Asiático e a América Latina.

Mas o objectivo geral deste investimento é muito mais ambicioso – demonstrar que este tipo de abordagem, com preços acessíveis e acesso incorporados no modelo empresarial, pode ser rentável –, embora, no nosso caso, quaisquer lucros sejam reinvestidos no negócio. E, em última análise, os ganhos transcendem o sector da saúde. O potencial de uma indústria doméstica e sustentável de produção no sector da saúde, no continente africano, virá a gerar benefícios ao longo de todo o espectro, desde o desenvolvimento ao fabrico e entrega de tecnologias de saúde, quer se trate de vacinas contra a covid-19 ou de terapêuticas ou medicamentos para as necessidades de saúde contínuas e iminentes.

Uma estratégia de investimento para desenvolver o fabrico de produtos de saúde em África tem efeitos colaterais ilimitados – o desenvolvimento de uma força de trabalho altamente qualificada em biotecnologia apoiada pelo ensino superior, oportunidades de emprego nesta indústria emergente para alavancar o dividendo demográfico no continente, investimento em infra-estruturas para apoiar os sistemas de energia, matérias-primas e transporte para sustentar a saúde e outros sectores de fabrico, maior alinhamento regulamentar e sistemas comerciais no continente, bem como potencial para uma maior parceria Sul-Sul com indústrias de biotecnologia em ascensão na Ásia e América Latina.

Iniciativas como a Partnership for African Vaccine Manufacturing (PAVM) são fundamentais. Criada pela União Africana e pela CEPI em Abril de 2021, tem como objetivo o reforço da capacidade local para cobrir 60% da produção anual das necessidades de vacinas de rotina de África até 2040. A PAVM deveria ser um apelo ao resto do mundo para os financiadores governamentais e privados, bem como para o setor privado – alertando o resto do mundo para a necessidade de remodelar os cuidados de saúde africanos de formas que vão para além do fabrico de vacinas.

Mo Ibrahim é presidente e fundador da Mo Ibrahim Foundation
Mark Malloch-Brown é presidente da Open Society Foundations

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