O cancro pediátrico “existe”?

Que país é este onde, durante dois anos, todos os dias fomos informados, à unidade, sobre os doentes com covid-19, mas não conseguimos produzir números com o mínimo de rigor sobre uma doença que mata 20% dos doentes em idade pediátrica?

Espero que, quer os doentes de cancro em idade pediátrica, quer os seus pais e familiares se não sintam ofendidos com o título desta minha reflexão. Para todos eles o cancro é uma realidade demasiado dura para que possa ser questionada.

Sei disso.

E, é por isso que pretendo, neste dia 15 de Fevereiro, que é o Dia Internacional da Criança com Cancro, questionar todos os que possam ter alguma responsabilidade que contribua para a incerteza que se vive nesta área. Questionar o nosso contributo para a situação, totalmente inaceitável, de não ser conhecida a realidade desta doença.

Normalmente, a informação sobre esta matéria diz que existem XXX casos por ano diagnosticados em Portugal. Digo XXX propositadamente porque, numa doença rara, para a qual apenas existem três centros de referência para tratamento e cujos casos rondarão os 400 (?) por ano, é insólito que os números se não conheçam com o detalhe científico que a doença exige.

Que país é este onde, durante dois anos, todos os dias fomos informados, à unidade, sobre o total de doentes diagnosticados com covid-19, os quais em muitos dias ultrapassam as dezenas de milhar, mas depois não conseguimos produzir números com o mínimo de rigor exigível sobre uma doença que mata 20% dos doentes diagnosticados em idade pediátrica? Vinte por cento será uma estimativa por alto? Será rigorosa? Será por equivalência com outros países com os quais nos comparamos e que possuem registos detalhados da situação? Alguém sabe?

E qual a taxa de incidência na população? Será equivalente à de outros países do mundo ocidental? Será menor? Essa dúvida persiste quando não tenho a certeza (alguém tem?) de o número de diagnosticados conter sempre o dos casos dos PALOP que se encontram em tratamento em Portugal.

E a taxa de incidência está a aumentar ou a aumentar e decrescer, tendo em conta a evolução da doença e a redução de crianças? E como se dimensionam os serviços para números incertos, numa doença que requer tanto tempo de hospital, seja ele em internamento ou hospital de dia?

Dimensiona-se para que realidade? Dizem-me que faltam médicos e enfermeiros nesta área. Seguramente que cada hospital o saberá, mas e o país? Sabe?

Que políticas públicas se desenham para uma doença com tão forte impacto na vida dos sobreviventes, se não se sabe de quantos estamos a falar? Como estimamos os apoios de que carecem? Como estimamos as sequelas por tipo de cancro?

E a “vergonha alheia”? Será que não sentem cada vez que são apresentados números de Portugal?

Eu sinto.

Sinto sempre que pertenço a um país que não sabe bem às quantas anda, cada vez que vejo serem apresentados números com pelo menos quatro a cinco anos de atraso. Um país que tem, porém, uma tão boa medicina. Uma circunstância que não faz jus aos profissionais de excelência que nos orgulhamos de ter.

E como participamos na investigação? Como sabemos onde é prioritário investigar? Como participamos em investigação internacional, sem números e sem dados? Mentimos, dizendo que os temos, ou “atamancamos” fazendo contas de somar com papel e lápis? Será que os nossos investigadores não sentem a sua credibilidade posta em causa por algo tão comezinho como não termos a capacidade de ter dados reais e comparáveis sobre uma doença que, apesar da sua gravidade e peso social, não consegue recolher com rigor cerca de quatro centenas e meia de casos por ano?

E a lei? Porque se não cumpre uma lei que impõe um registo oncológico pediátrico e que está em vigor desde 2018? Seguramente, legislou-se sobre a matéria porque ela é importante e determinante para a qualidade de vida de cada doente, tendo havido o cuidado de destacar as particularidades do Registo Oncológico Pediátrico. Porque não há consequências para a omissão de cumprimento da lei?

Custa-me falar sobre este assunto. Custa-me pela repetição, ano após ano, de algo que deveria ser possível resolver em pouco tempo e de forma assertiva. Há anos que a Acreditar fala sobre a necessidade de termos um Registo Oncológico Pediátrico actualizado, sem conseguir que os diversos intervenientes neste processo se unam para o resolver de forma definitiva e empenhada.

No entanto, a comunidade do cancro pediátrico é muito, muito competente.

A sociedade é muito sensível à imagem de uma criança com cancro.

Não é incompreensível sermos tão sensíveis ao caso da Maria, do Tiago e do António e depois não sabermos com quantas Marias, quantos Tiagos e quantos Antónios deveremos estar preocupados? E que particularidades possuem as Marias, os Tiagos e os Antónios que nos devem levar a desenhar cuidados para as suas vidas, desejavelmente longas, desejavelmente com toda a qualidade a que têm direito?

Tantos pontos de interrogação para um dia que deveria ser o dia de esperança e de alento para pais e doentes.

As crianças doentes e os seus pais já têm interrogações que cheguem. As crianças e as famílias não precisam de se preocuparem com algo que temos o dever de fazer por elas, para elas.

Acabemos com os?.

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