Quo vadis, voto electrónico?

O argumento que o voto electrónico pode ser a prescrição para a não participação não colhe consenso.

Nestes últimos dois anos assistimos em 80 países, de todos os continentes, ao adiamento eleições, pelo menos por uns meses. Desses, 42 países adiaram mesmo eleições nacionais ou referendos. São os casos dos Estados Unidos, Argentina, Itália, Nigéria, ou da Nova Zelândia.

A “fragilidade” da concretização de uma eleição marcada numa situação de calamidade global faz-nos pensar nas alternativas que são dadas aos cidadãos para cumprirem os seus direitos e deveres cívicos. Aliás, se um voto electrónico na praia já decidiu decretos que impactam na vida de todos nós, é normal que tenha surgido amiúde na comunicação social, nestes últimos dias, a questão do voto electrónico. Porque não haveríamos de poder votar em quaisquer eleições, entre uma bebida e um mergulho?

No entanto, num regime democrático, não pode haver qualquer sombra de dúvida de que a eleição foi justa, que os votos foram contados e que todas as pessoas puderam votar e que o seu voto foi contabilizado. Se pensarmos bem, no caso das eleições, nem é precisa a confirmação da existência de um erro ou de uma irregularidade num processo de votação eletrónica para pôr em causa a sua legitimidade. A simples suspeita já produz prejuízos e danos que vão afetar de forma irreparável as instituições democráticas e o funcionamento da democracia.

Não fosse o último ano e poderiam já argumentar: “Que exagero, retrógrado a parar o vento com as mãos, velho do restelo!”. Mas todos nos recordamos das imagens reais de uma invasão, num país do outro lado do oceano, que provou que, mesmo não existindo dúvidas sobre o resultado das eleições, por via de notícias falsas, houve um conjunto de cidadãos que invadiu o capitólio reclamando que as eleições afinal tinham sido uma fraude.

Mas e se não fosse apenas desinformação? Como justificaríamos os primeiros vídeos de cidadãos nas redes sociais, mostrando que um qualquer malware nos seus computadores não os permitiam votar no candidato pretendido?

E o argumento que o voto electrónico pode ser a prescrição para a não participação não colhe consenso. Existirão certamente pessoas que não puderam votar porque não se encaixam nas diversas iniciativas de voto antecipado, mas tal não explica a abstenção. A não participação tem outras origens que merecem ser discutidas e não cabem neste artigo.

Contudo, no espaço e no tempo certos, o desenvolvimento tecnológico serve a sociedade democrática. E, com efeito, contribui para o aprofundamento da democracia e para o aumento da participação cívica, coletiva e pública, sem pôr em causa os alicerces incontornáveis e inabaláveis imprescindíveis à manutenção da democracia.

Em 2015, os portugueses que viviam em Timor foram impedidos de votar numas eleições legislativas porque os boletins de voto dos nossos concidadãos não chegaram a tempo. E, neste caso, outras matérias como a influência de terceiros no voto não se colocam, pois, a existir, nada se altera entre o uso ou não de tecnologia. Por outro lado, nas eleições em causa, o impacto encontra-se também contido.

Mas para se chegar lá pequenos passos têm de ser dados, não apenas com experiências, mas com a construção de um sistema auditável, acompanhado por múltiplos atores (incluindo da academia e da sociedade civil), e amplamente divulgado com a credibilidade imprescindível para que todos possamos acreditar e, sobretudo, confiar nessa alternativa.

O desafio é escolher o momento e o ato eleitoral mais adequados, assim como o escopo do voto eletrónico, sendo trivial que as próximas eleições, daqui por umas semanas, não o são, sem prejuízo da discussão que sempre surge nestes momentos.

Não nos podemos demitir do dever de pensar este direito e das ameaças que temos à nossa frente, embora tal não deva ser feito, face ao que está em causa, com falta de profundidade que as urgências do momento sempre implicam. Porquê? Porque a importância da confiança de um eleitor numa democracia está bem resumida na frase de Winston Churchill: “Na base de todas as homenagens que possam ser prestadas à democracia está o homem comum, ao entrar numa pequena cabina com um simples lápis para fazer uma cruzinha num bocado de papel. Não há retóricas nem debates sucessivos que possam diminuir a enorme importância desse ato.”.

Artigo de opinião adaptado de uma intervenção, no âmbito de um MeetUp “Voto Eletrónico – Desafios e Oportunidades”, na Associação para a Promoção e Desenvolvimento da Sociedade da Informação, dia 27 de maio de 2021

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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