Juiz foi proibido de continuar no Sporting. Procurador foi autorizado, mas contra vontade de Lucília Gago

Situações idênticas deram origem a decisões opostas. Órgão de disciplina dos juízes entendeu que participação nos órgãos sociais do clube é passível de comprometer dignidade e prestígio da função judicial.

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Frederico Varandas tem vários magistrados nos órgãos sociais do Sporting LUSA/RODRIGO ANTUNES

O juiz desembargador Tomé de Carvalho, que integra a Mesa da Assembleia Geral (MAG) do Sporting e se queria recandidatar ao cargo nas eleições que vão ter lugar a 5 de Março, novamente nas listas de Frederico Varandas, foi impedido de o fazer. O Conselho Superior da Magistratura, órgão de disciplina dos juízes, considerou que o exercício desta função pode “colocar em causa a dignidade e o prestígio da função judicial”.

Porém, um procurador que pertence à mesma assembleia geral e também quer voltar a concorrer, substituindo Rogério Alves no cargo de presidente, viu o Conselho Superior do Ministério Público autorizar o exercício do cargo – muito embora contra a vontade da procuradora-geral da República, Lucília Gago, que tal como outros conselheiros votou vencida. Ambos os episódios tiveram lugar este mês de Janeiro, e mostram bem a controvérsia que desencadeia esta questão. Os conselheiros dividiram-se ao ponto de, no caso do Ministério Público, ter de ser escolhido um novo relator para a decisão sobre o procurador e ex-dirigente sindical João Palma, por o relator inicial defender a proibição do exercício da função, posição com a qual a maioria não concordava. Tratou-se, porém, de uma magra maioria, por dois votos.

Numa entrevista à CNN Portugal, Frederico Varandas explicou que a recusa do Conselho Superior da Magistratura em viabilizar a candidatura de Tomé de Carvalho fez outro magistrado, Baltazar Pinto, que dirigia o conselho fiscal e disciplinar, desistir de continuar na sua equipa. “Tínhamos a informação de que iria ser complicado. O próprio João Palma pediu. Baltazar Pinto não quis correr o risco de ver o seu pedido recusado”, explicou Varandas, vendo nesta questão um exemplo de como se tem “tratado mal o futebol”. “Não posso admitir que tratem o Sporting assim. Se há bandidos e ladrões no futebol, que sejam presos e afastados”, declarou.

Foi em Janeiro de 2020 que entraram em vigor novas disposições legais remetendo para os órgãos disciplinares dos magistrados estas autorizações – razão pela qual a questão não se pôs relativamente a quem já ocupava estes cargos antes, como é o caso de João Palma e Tomé de Carvalho. Ou quem se candidatou a eles até esse momento, como sucedeu com o ex-desembargador Rui Rangel, que concorreu à liderança do Benfica há três anos, tendo entretanto sido afastado da magistratura na sequência de suspeitas criminais.

Estabelece esta nova lei que estes conselhos superiores só podem autorizar o exercício de funções não profissionais “em quaisquer órgãos estatutários de entidades envolvidas em competições desportivas profissionais, incluindo as respectivas sociedades accionistas”, quando isso “não envolver prejuízo para o serviço ou para a independência, dignidade e prestígio da função judicial”.

Foi com base nestes pressupostos que Tomé de Carvalho viu chumbado o seu pedido. O órgão de disciplina dos juízes fala ainda na “conturbação que tem caracterizado a discussão sobre matérias relacionadas com clubes de futebol”. Mas quem defende a posição contrária remete para um acórdão assinado por António Vitorino quando o socialista integrava o Tribunal Constitucional, em 2006, que determinou que os juízes não podiam ser impedidos de exercerem funções nos órgãos disciplinares do futebol profissional, ao contrário do que defendia já na altura o Conselho Superior da Magistratura, numa posição de resto partilhada pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses. “Afinal só podem integrar estes órgãos os mafiosos?!”, ironiza um membro de um dos dois conselhos, que votou a favor da continuidade de João Palma.

Contactado pelo PÚBLICO, o candidato a presidente da mesa da assembleia geral dos leões escusou-se a falar da questão. Também não foi possível obter declarações de Tomé de Carvalho. A questão não é pacífica dentro do próprio clube: em 2018, na sequência do ataque à academia do Sporting, um grupo de apoiantes de Bruno de Carvalho chegou a entregar no Parlamento um abaixo-assinado para que estes cargos passassem a estar vedados aos magistrados.

O presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, Adão de Carvalho, diz que deviam ter sido os deputados a estabelecer este tipo de incompatibilidade, em vez de terem deixado a questão nas mãos dos conselhos superiores – cuja cobertura legal para tomar decisões neste campo pode não ser, no seu entender, suficiente, até porque a lei não define quais os critérios que devem ser usados para aferir da eventual perda de independência, dignidade e prestígio dos magistrados.

Varandas não o disse, mas o assunto talvez não fique por aqui. Um terceiro magistrado que insiste em fazer parte da sua equipa poderá vir a suscitar novo pedido para exercer estas funções.

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