Personalidade de 2021: os que cuidam

A todos os que estiveram no epicentro desta luta, eu dedico estas palavras, na esperança de que todos os portugueses percebam que o verdadeiro heroísmo está no anonimato dos que transformam dor em sorrisos, e levam para casa a taxa desse câmbio.

Dobrámos 2020 exaustos, proibidos de tirar férias e cheios de cicatrizes emocionais da magnitude de pais que se separaram dos filhos durante meses, para dizer “presente” à luta contra um inimigo desconhecido no maior desafio de que nos lembramos. Só se consegue ter força para caminhar com uma âncora de mágoas, quando o próprio caminho é o amor das nossas vidas. E o nosso amor é transformar as caras de dor, de angústia, de sofrimento pelo ar que teima em não entrar, dos vossos pais, das vossas mães, dos vossos avós, e não raras vezes dos vossos filhos, naqueles sorrisos calorosos do regresso a casa e às luzes das suas vidas. E o nosso amor é ver as pessoas a sair do hospital, mesmo que nunca mais se lembrem de nós.

Não falarei dos médicos porque jamais quero ser juiz em causa própria. Como tal, vou-me concentrar nos que dedicaram as suas vidas a cuidar dos que estão nos momentos mais vulneráveis das suas vidas: enfermeiros e auxiliares. Pouco mais levam do que sorrisos e obrigados das almas em que tocaram, e mereciam todos os Globos de Ouro deste país.

Este ano, foi só mais um ano, mas foi também o ano em que as qualidades que me fazem dedicar estas palavras foram mais importantes e se tornaram mais evidentes. Certo é que têm responsabilidades bem diferentes, diferenciações teóricas e técnicas muito distintas, mas junto-os nesta dedicatória, e a todos os que caibam nestas palavras, no que deveria merecer as vénias do país: a humanização dos cuidados.

Medicação, monitorização dos sinais vitais, higiene, dar de comer e beber, mudar a fralda, pentear o cabelo, fazer a barba, mudar de posição, puxar conversa, arrancar uns sorrisos, e ainda estar preparado para, num momento de adrenalina, pensar rápido, agir depressa e articular as atitudes que seguram as vidas dos vossos mais-que-tudo. É a maior proximidade entre pessoas que se pode imaginar. É ficar a saber o quanto ele gosta da sua mulher, o nome da filha que é o orgulho da família, e aquela paixão louca por um bom dia de pesca. É duro absorver tantas emoções nos momentos da nossa maior vulnerabilidade. Todos os dias. E noites. Sábados, domingos e feriados. E também neste Natal que passou. Todos os dias. Se não valorizamos isto, não valemos nada. São estes que deveriam ter as passadeiras vermelhas do glamour. Foram estes que nos seguraram nos dias mais difíceis da nossa vida.

Durante toda a pandemia, as visitas aos doentes estiveram muito limitadas, e, nos períodos mais críticos, foram nulas. “Digam à minha família que gosto muito deles...” dá logo vontade de chorar. Tentámos driblar a solidão com as videochamadas naqueles em que a condição clínica o permitia. Claro. Não se tratam doenças, tratam-se pessoas. Não é por, injustamente, se receber um ordenado inferior a quatro dígitos que se esquece que o caminho é o amor. E foram eles que tantas vezes seguraram naquele aparelho que fazia a ponte entre os vossos queridos e vós.

Fica pesado o braço, e treme um pouco a mão, ao ser invadido pelas emoções mais puras, mais fortes e mais genuínas que passam através de uma câmara a transbordar as ansiedades de parte a parte, com eles a fazer de ponte entre dois mundos agora tão distantes, com o peso da responsabilidade causada pela esperança de se voltarem a unir. Também houve videochamadas de fim de vida, ou o ajudar o familiar a se equipar para entrar no quarto para um adeus ao corpo que não resistiu a uma qualquer doença. E as dores dos outros também doem a quem escolheu o caminho da empatia e da compaixão. E a todos os que estiveram no epicentro desta luta, eu dedico estas palavras, na esperança de que todos os portugueses percebam que o verdadeiro heroísmo está no anonimato dos que transformam dor em sorrisos, e levam para casa a taxa desse câmbio.

(Eu já tinha escrito quase todos estes meus sentimentos, quando perdi o texto, e tive que ter a coragem de começar de novo e, por isso, estas são as minhas segundas melhores palavras aos que deveriam estar em primeiro, nas memórias de 2021.)

Pelo que fizeram para me ensinar e inspirar na arte de cuidar, eu agradeço do fundo do coração. Pelo que todos nós lhes devemos por continuar a ser humanos, todas as palavras são poucas, e, ainda assim, nem palavras lhes dão.

Foi um ano muito pesado, que deveria ser dedicado a quem o tornou um pouco mais leve: aos que cuidam.

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