António Magalhães: “No Douro estamos a perder vinhas com escala humana”

António Magalhães, responsável máximo da viticultura da Fladgate Partnership (Taylor’s, Croft, Fonseca) e um estudioso da história do Douro, escolheu a Quinta da Roêda, junto ao Pinhão, para explicar a evolução da paisagem vinhateira.

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Rui Oliveira

A partir de um conjunto de diferentes vinhas, António Magalhães mostrou os avanços e os recuos da arquitectura das vinhas desde a filoxera até à classificação da região como Património Mundial, “o melhor que podia acontecer ao Douro”, diz. Já o pior, assegura, foi mudar o método de rateio da quantidade de vinho do Porto que cada agricultor pode produzir, que passou a ser determinado pela área de vinha projectada, em detrimento do número de videiras plantadas por hectare. “No Douro estão a plantar-se vinhas sem videiras”, lamenta.

Estamos na vinha da Benedita. Que vinha é esta?
É uma vinha pós-filoxera. Há duas coisas que a tornam distinta: uma alta densidade de plantação — a vinha tem 3,3 hectares e possui mais de 20 mil videiras; e tem uma percentagem de videiras mortas muito baixa. É uma coisa que me intriga. Como é que uma vinha tão velha tem tão poucas videiras mortas?

Já encontrou uma explicação?
Ainda não.

Em que ano foi plantada?
Não se sabe, mas é do final do século XIX ou do início do século XX. A Quinta da Rôeda surgiu nos meados do século XIX e foi uma escola da filoxera. No Baixo Corgo, a Quinta da Vacaria, por exemplo, também foi uma escola da filoxera. Não é uma vinha muito produtiva, mas em anos como este, que foi generoso, é possível ter uma produção de 600 gramas por videira, o que é muito gratificante. Ao lado da vinha da Benedita, temos uma vinha ao alto, plantada em 2006. Entramos no século XXI. É uma vinha pós PDRITM [Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes]…

Ainda influenciada pelo PDRITM?
Não. Eu entrei na empresa e nessa altura o tipo de vinha do PDRITM, de patamares de dois bardos, já estava condenado. A grande solução era a vinha ao alto.

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Quinta da Roeda nelson garrido

Mas havia um linha vermelha em termos de declive?
Na empresa, a linha vermelha estava nos 35% de declive. No fim da década de 90 esgotámos o terreno para a vinha ao alto, mas, com a compra da Croft (a Quinta da Rôeda pertence à Croft), encontrámos ânimo e terreno para uma segunda vaga de vinha ao alto. Renovámos 25% da Rôeda. Quando chegámos ao ano de 2005, também já tínhamos esgotado a área confortável para vinha ao alto. Só que, nessa altura, já havíamos criado um outro modelo de vinha: o patamar estreito, de um só bardo, que viria a substituir, para terrenos com mais de 35% de declive, o patamar de dois bardos do PDRITM. Uma novidade introduzida por nós foi a utilização do laser na abertura do patamar, para conseguirmos uma inclinação de 3% (necessária para a drenagem das águas das chuvas).
Estive a reler um artigo que escreveu para a Fugas em 2006, depois de uma visita à Quinta da Rôeda, e fala lá numa coisa curiosa. Fala do patamar estreito com 2,30 a 2,50 metros de largura. Na altura, era o que podíamos fazer. Com esse novo patamar, ganhámos sustentabilidade ambiental [em 2009, a empresa ganhou o prémio BES Diversidade], mas tínhamos um calcanhar de Aquiles, que era a sustentabilidade financeira, porque não tínhamos um número de videiras que compensasse a passagem de dois bardos para um bardo por patamar. Resolvemos o problema em 2014 com o mesmo modelo, mas aplicado a um patamar de 1,50 metros de largura. Este é o patamar que substitui na perfeição o patamar do PDRITM. Não é melhor na densidade de plantação do que o patamar de um bardo com uma largura de 2,50 metros (pode conseguir um ganho de dez por cento), mas possui maior racionalidade ambiental e económica, já que permite plantar mais 36,5% de videiras por hectare.

E este modelo é mecanizável?
Sim, com tractores mais pequenos, que já existem. Podem ficar mais caros ao final do dia, mas, para quem vai plantar mais 36,5% de videiras, compensam.

Um dos erros do PDRITM foi querer adaptar as vinhas às máquinas….
Adaptar uma vinha à máquina nunca deu resultado. O PRITM foi um desastre. Não apostou na arquitectura da paisagem, os taludes eram altos e imperfeitos. Além de ter apostado em poucas castas, também permitiu que se plantassem nos sítios errados, porque o critério era cumprir uma quota por variedade. Os viticultores não gostavam da Touriga Nacional e plantavam a quota mínima, que era dez por cento. O PDRITM foi igualmente uma aberração ecológica, porque estimulou a limpeza química da vinha. Na altura, isso não visto como um mal, era a única forma de tornar as vinhas sustentáveis. Hoje, podemos falar mal do PDRITM, mas temos de olhar para o seu contexto. Na região espanhola do Priorat também se cometeram os mesmos erros. Chegamos à vinha da Ferradura...

...que é uma das primeiras vinhas do pós-filoxera...
Sim, uma das primeiras. O Douro teve os primeiros sinais de filoxera na arrebentação de 1862 para 1863. Os sinos tocaram a rebate em 1872, mas continuou a haver um período de negação. Só a partir de 1876 é que se levou a praga a sério. Grande parte da agronomia nacional pensava que a solução estava em França e muitos emissários foram a França em busca de novidades. O Douro aceitou algumas ideias e rejeitou outras. Uma das que rejeitou, felizmente, foi a de que devíamos aproveitar para mudar as castas, apostando nas francesas. Outra que não vingou, não sei porquê, era a de que se deviam separar as castas por talhões. O Douro resistiu e manteve a mistura das castas.
Há um ponto importante que é pouco falado: o porta-enxerto. Quando surgiram os primeiros porta-enxertos americanos (resistentes à filoxera), o porta-enxerto que vai triunfar no Douro é o Vitis Rupestris usado na região do Lot (Occitânia, no Sul de França). Esse porta-enxerto vingou, mas tinha um problema: não induzia à produção. Quando chegou o PDRITM, e como as vinhas passaram a ter menos videiras, era preciso tornar as vinhas mais produtivas. Foi então que se começou a trocar o Vitis Rupestris pelo porta-enxerto Richter 99. Como se explica que o Vitis Rupestris do Lot se tenha mantido no Douro durante tanto tempo, se não era muito produtivo? Sou eu a pensar, mas, se calhar, foi porque as vinhas tinham uma alta densidade de plantação. Não era necessário puxar tanto pelas videiras. Não será esse um dos grandes segredos da longevidade das vinhas velhas?
Na vinha da Ferradura, o compasso é de um metro por um metro, igual ao modelo francês, o que dá uma densidade de plantação de dez mil videiras por hectare. Antes da filoxera, a densidade era mais baixa. As vinhas estavam em vegetação e muito distantes umas das outras. Eram estacadas todos os anos. Após a filoxera, passaram a ser aramadas, outra novidade que veio de França. Mas o compasso francês não vai vingar. Quando Moreira da Fonseca fez o primeiro cadastro, encontrou vinhas com videiras plantadas a uma distância que ia de 1,45 metros a 1,74 metros.

Moreira da Fonseca foi um revolucionário O seu método de pontuação para classificar cada parcela de vinha do Douro, aplicado pela primeira vez em 1947, era único no mundo (assentava em 12 factores com influência na qualidade potencial das uvas para vinha do Porto)….
A única divergência que posso ter do Moreira da Fonseca foi ter atribuído 50 pontos negativos às vinhas com um compasso inferior a 1,45 metros e 50 positivos às vinhas acima dos 1,74 metros. Ele defendia compassos largos. O que nunca pensou é que viriam a ser tão largos como os do PDRITM.

Voltando à vinha da Ferradura. Qual é o modelo de vinha que devia servir de referência para a região?
Há três. Se a vinha que se quer reconverter tem uma arquitectura em socalcos, nós propomos a segunda geração de socalcos pós-filoxera, que já aplicamos noutras quintas. Reconstruimos o muro, deixamos na base do muro uma faixa até 2 metros de largura para permitir a passagem do tractor em todo o socalco e depois construímos uma vinha com entrelinhas de 1,40 a 1,50 metros. Aliviamos a penosidade do trabalho e mantemos o acesso à reconstrução contínua do muro. Se a vinha não tiver muros e se o declive for inferior a 30-35%, defendemos a vinha ao alto. A partir de 35% cento, apostamos no patamar de 1,50 metros com 3% de inclinação.

O modelo de vinha em socalco é economicamente viável?
Para uma empresa como a nossa, pode ser. Mas para os viticultores pequenos não compensa o esforço de as manter, porque a uva não tem valor e porque o maior número de videiras destas vinhas não é compensado em quantidade de vinho do Porto por hectare. Terem passado a determinar o “benefício” [a quantidade de vinho do Porto que cada viticultor pode produzir] em função da área projectada de vinha, quando antes era pelo número de videiras, foi o que mais negativamente influenciou a arquitectura da paisagem. Quando se passa o benefício da videira para a terra, estamos a dizer ao agricultor: ‘Não te preocupes com as videiras, preocupa-te com a área da tua vinha, desde que não tenhas menos de 2500 videiras por hectare.’ No Douro estão a plantar-se vinhas sem videiras e estamos a perder vinhas com escala humana. Isso pode ser terrível no futuro. As pessoas que trabalham essas vinhas com escala humana não têm seguidores e não têm outra solução senão vendê-las. E isso só vai agravar o problema da falta de mão-de-obra na região.

De que maneira?
A partir de 2016, começámos a fazer uma caracterização sociológica das nossas rogas e descobrimos um dado espectacular: 44,2% dos trabalhadores têm uma vinha. Isso é muito importante. Temos de conservar as pessoas que tratam dessas vinhas, para não perdermos ainda mais mão-de-obra.

Já consegue fazer um balanço sobre um impacto da classificação do Douro como Património Mundial?
Foi o melhor que podia ter acontecido ao Douro. P um travão ao modelo de vinha do PDRITM e trouxe respeito pelo modelo que já estava cá, o das vinhas em socalcos. E valeu também a pena pela forma como se olha hoje para a ocupação do território. A paisagem duriense não teria a beleza que ainda tem. Teria piorado.

Quem ainda não tirou partido da classificação foram os viticultores mais pequenos. Como explica que, 20 anos depois, o preço das uvas tenha diminuído?
Preocupa-me a falta de valorização da uva. Estes 20 anos coincidem com a criação da DOC Douro. Numa conferência em 1954, Moreira da Fonseca já explicava que a razão de os viticultores desejarem tanto o “benefício” se devia precisamente à valorização da uva. Nessa altura, a uva que excedia o quantitativo para vinho do Porto valia 63 por cento da uva que era beneficiada. Hoje, ainda vale menos. Ou seja, a DOC Douro não trouxe valorização à uva.

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