Saúde: tempo novo, política nova?

Precisa-se de uma nova política que saiba tirar o maior benefício dos recursos disponíveis, evitando redundâncias, gerindo com rigor o sector público, promovendo efectiva regulação da competitividade com o sector privado e social e assegurando o direito de escolha dos cidadãos.

Seis anos depois, múltiplas promessas não cumpridas e uma pandemia, o inevitável aconteceu – rotura do entendimento parlamentar à esquerda. E ao contrário de certo discurso político, a autópsia é indispensável. Os três partidos subverteram a sua alma cujos alicerces, no partido dominante, são a defesa da liberdade e tolerância, próprios da sociedade aberta, respeito pela alternância democrática através de eleições livres, reconhecimento do vencedor e a pertença à geopolítica ocidental. Os dois partidos minoritários nunca abdicaram nem enganaram os seus eleitores: oposição ao modelo democrático europeu e ocidental, à União Europeia e à NATO e preservação da sua identidade marxista-leninista na concepção do poder e da sociedade. O cimento aglutinador foi a identificação de inimigo comum, o dito Governo da troika, perante aceitação implícita dos partidos desse Governo, manipulação da realidade através de propaganda intensa, deficiente clarificação de propósitos e ostracização da outra metade do hemiciclo.

Nada melhor que a política na Saúde para ilustrar esta realidade. Epistemologia do passado, promessas sucessivas e propagandeadas ad nauseum, poeira sobre o escrutínio político dos cidadãos perante silêncio ou incapacidade da oposição. Sem soluções para os múltiplos problemas, foi necessário ir identificando culpados, bodes expiatórios da sua ineficácia. É dos compêndios. Ideias antigas embrulhadas em novo vocabulário e confiança no destino. A proposta de dedicação plena e faseada em vez de exclusividade é apenas um exemplo. Mas há outros.

O Governo escudou-se na capacidade, dedicação, empenhamento e espírito de serviço dos profissionais de saúde decisivos para o combate à pandemia para esconder erros e omissões nos momentos mais críticos. Quanto ao bem-sucedido programa de vacinação tentou fazer esquecer a acção titubeante inicial da sua burocracia e, subliminarmente, foi invocando esse sucesso como obra sua. O objectivo foi esbater a diferença entre uma cultura de responsabilidade e isenção em missão pública e nacional e o comodismo acomodatício, autocentrado e self-serving de responsáveis políticos.

Depois, indiferença aos sinais de alarme dum SNS exaurido nos seus recursos: carências de profissionais, médicos e enfermeiros, equipamentos obsoletos, produto dos anos de sucessivas cativações financeiras – as contas certas -, em vez das reformas necessárias, listas de espera para actos médicos e cirúrgicos cuja dimensão real se desconhece e filas intermináveis para marcação de consultas em centros de saúde. E autismo, perante duas realidades que se impuseram nas duas últimas décadas: cobertura sanitária adicional ao SNS por seguros privados e públicos de saúde, como a ADSE, de cerca de 40% da população e rede de instituições privadas, competitiva e já não supletiva das necessidades assistenciais, atractiva para médicos, enfermeiros e técnicos de saúde, perante imobilismo do sector público. Isto é, um sistema de saúde misto e operacional.

A este saldo negativo há que acrescentar as promessas não cumpridas nestes seis anos de governação: de um médico de família para cada português à realidade de um milhão de cidadãos sem acesso, da construção de instalações hospitalares novas que não passaram da celebração da intenção, às contratações prometidas sem impacto prático, da promessa falhada de resolução da plétora dos actuais serviços de Urgência Central onde 2/3 dos casos são falsas urgências motivadas pela incapacidade de resposta a montante. E, cereja no topo deste exercício, a necessidade de impor regulação complacente. Daí a proposta de lei de regulamentação das ordens profissionais para assegurar o controle de vozes discordantes e minimizar o poder de auto-regulação conferido pelo Estado. Nada de novo ou de inesperado!

A memória é âncora indispensável. O conflito com a Ordem dos Médicos tem história e denominador comum: receio dos médicos, do seu estatuto na sociedade em geral e da força mobilizadora das suas organizações. Corporativismo médico foi o conceito unificador para os males dessa tribo incontrolável e que era preciso pôr no seu lugar. E com o foco novamente apontado para o Serviço Nacional de Saúde e as Carreiras Médicas. Nos sucessivos governos, nunca houve continuidade nas políticas de saúde indispensável à viabilização de reformas estruturais que não cabem na duração de uma legislatura e que há anos se impõem. Daí o lastro pesado no deve e haver do escrutínio.

Ao longo de décadas, qualquer crítica mais substancial ao SNS e ao seu modelo de organização era assumida como crime de lesa-majestade, de oposição ao direito constitucional à saúde e tratada por invisível polícia do pensamento como abjuração merecedora dum vade retrum Satanás! Ignoraram-se questões essenciais para a sobrevivência dum sector público eficiente e moderno. Partidarização e burocratização no SNS, ausência de política de meritocracia profissional em todos os sectores, da gestão administrativa à medicina clínica, subvalorização das carreiras profissionais. Causas da doença do SNS que permaneceram intocadas. Há anos que se chamou a atenção para a necessidade de separação de funções num Estado, simultaneamente dono, prestador e regulador nos serviços de saúde e medicina clínica. Impõe-se a necessidade de gestão profissional, competente, e não dependente do partido dominante em cada ciclo eleitoral. Há uma realidade nova: um sistema de saúde misto em que o sector privado se desenvolveu, com o beneplácito de sucessivos governos, tornando-se competitivo com o SNS.

Precisa-se, pois, de uma nova política de saúde que, tendo em conta os recursos disponíveis, saiba tirar deles o maior benefício, poupando redundâncias, gerindo com rigor o sector público, promovendo efectiva regulação da competitividade com o sector privado e social, fomentando exigência de qualidade e prestação de contas e assegurar o direito de escolha dos cidadãos. A separação funcional dos profissionais de Saúde, nos seus diferentes componentes, público, privado e social, conduzindo a verdadeira exclusividade será inevitável. O problema não é a exclusividade e estou de acordo com o depoimento de dois ex-ministros da Saúde recentemente publicado. Na conjuntura actual não servirá como alavanca de uma transformação efectiva, mas para calar reivindicação política. O que falta é uma política nova para a saúde que tenha em conta a realidade, que seja promotora de gestão profissional isenta e meritocrática e de um projecto estimulante que conquiste the heart and minds dos profissionais, e que os faça acreditar, como aconteceu com a minha geração, de que a resposta pública é fundamental para assegurar equidade, qualidade e equilíbrio num sistema inexoravelmente misto.

E o sector privado resolverá o problema da exclusividade dos seus quadros principais, dando-lhes condições de trabalho, motivação e compensação adequada fixando-os às instituições, porque sabem que essa é a chave do sucesso para a sua organização. Sem verdade económica e sustentabilidade financeira que permita ultrapassar o desequilíbrio financeiro crónico e sem uma mudança estrutural do SNS tornando-o competitivo e atractivo, não haverá “bazuca” financeira que chegue para a Saúde.

Será essa política nova possível? Requer uma discussão objectiva, inteligente e isenta, baseada em realidades, em programas de acção susceptíveis de monitorização e avaliação permanente e sem o peso ideológico que marcou estes seis anos de governação. E nesse desafio, os médicos e a sua Ordem, são aliados, não são inimigos. É um combate pelo direito efectivo dos cidadãos à Saúde e à medicina clínica, sem discriminação no acesso e em tempo útil, pela qualidade, na educação e na prestação médica. Pressupõe dignificação dos profissionais e das suas carreiras, direito e dever à formação continuada conducente a recertificação profissional, nos sectores público, privado e social e preservação da relação médico-doente alicerce da boa medicina. Esta é a nossa responsabilidade indeclinável como médicos e como cidadãos, a qual me parece indispensável para para a mudança que se impõe na saúde.

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