No PS há mais vida além da “geringonça”

Finda esta experiência, que teve indiscutivelmente aspetos muitos positivos, mas manifestamente insuficientes, impõe-se ao PS ir além da “geringonça” e abrir um novo ciclo com novas parcerias estratégicas.

Fui daqueles que em 2016 defenderam a soi disant "geringonça”, por considerar que um entendimento com os partidos à esquerda do PS era fundamental para libertar o país do rolo compressor da direita ultraliberal, que aplicara durante mais de quatro anos um programa de experimentalismo social e de austeridade cega, deixando atrás de si um rasto de desemprego, de falências, de imigração e de pobreza.

Os portugueses não se esquecem que os anos da governação da coligação PSD/CDS foram anos de “chumbo”, que às ordens da troika e querendo ir além dela, mergulharam o país numa profunda desesperança e criaram uma crispação social e política que só teve paralelo nos anos pós-revolução.

Foi, pois, com renovada esperança que milhões de portugueses olharam para a oportunidade de uma solução de compromisso de governação entre o PS, o PCP e o BE, que tivesse como programa, a um primeiro tempo, a reposição dos rendimentos e direitos subtraídos aos portugueses, particularmente aos mais pobres - com a reposição dos cortes nos apoios sociais - e às classes médias - com a reposição dos cortes dos salários e das pensões - mas também uma solução que fosse capaz de conceber e implementar uma agenda progressista e reformista, que atacasse as debilidades estruturais do país e lançasse um novo paradigma de desenvolvimento para o país, baseado no conhecimento intensivo, nos recursos humanos altamente qualificados e justamente remunerados e numa economia de alto valor acrescentado.

Acontece que os acordos celebrados entre os três partidos do novo arco da governação à esquerda se ficaram pela reposição de rendimentos e direitos, isto é, apresentaram-se como o “negativo fotográfico” do governo de direita, o que sendo importante, enjeitava a oportunidade impar de construir um programa político ambicioso que oferecesse ao país um horizonte de esperança geracional.

Assim sendo, o programa da “geringonça” esgotou-se em grande medida ao fim do segundo ano de governação, porque a grande maioria das medidas acordadas foram aplicadas, como previsto, nos primeiros dois anos de Governo.

A “geringonça” falhou quando se limitou a ser apenas uma resposta conjuntural à crise e recusou a oportunidade histórica de se constituir como uma plataforma transformacional, com a ambição de operar mudanças sistémicas.

Finda esta experiência, que teve indiscutivelmente aspetos muitos positivos, mas manifestamente insuficientes, impõe-se ao PS ir além da “geringonça” e abrir um novo ciclo com novas parcerias estratégicas. Um ciclo em que o PS se mostre capaz de oferecer um novo impulso estratégico ao país. Um PS capaz de preparar o futuro com audácia, convocando as forças mais criativas, mais dinâmicas e mais disruptivas do país. Sendo capaz de ouvir aqueles que estão à frente do nosso tempo, que têm uma visão prospetiva, um olhar tridimensional, a destreza de rasgar novos horizontes. Para tal, é fundamental envolver os artistas, os agentes culturais, os empreendedores, os investigadores, os cientistas, a diáspora. Pensar fora da caixa, implica sair de dentro da caixa, sair da zona de conforto. Implica arriscar, ousar, inovar, desbravar novos caminhos.

É preciso enfrentar a incerteza, com a certeza de que, se não o fizermos, ficaremos definitivamente para trás.

Precisamos de inovação institucional. Precisamos de combater a nossa inércia atávica. Temos o dever de promover mudanças institucionais, que adeqúem as organizações às novas problemáticas, aos novos comportamentos, aos novos propósitos, aos novos valores, a uma sociedade e a um mundo em transformação fulgurante. Precisamos de organizações com um desenho institucional capaz de responder de forma célere e eficaz às mutações sociológicas.

Não nos iludemos, o país tem uma longa lista de problemas complexos para resolver. Tem uma dívida pública e privada gigantescas, das maiores do mundo; tem mais de 2 milhões de pobres; tem um problema endémico de baixa qualificações; tem um tecido económico baseado na mão-de-obra intensiva e nos baixos salários; tem um desfasamento entre o nível de qualificações e o nível de emprego; tem cada vez mais gente altamente qualificada a fazer trabalho indiferenciado ou em alternativa, a partir para a imigração; tem mais de 20% dos trabalhadores a ganhar o salário mínimo, quando no início do século esse número não ultrapassava os 4%; tem mais de 1/3 dos trabalhadores em situação de pobreza; está a perder a batalha da competitividade e da convergência e a ser ultrapassado pelos países do leste europeu, que aderiram à UE muitos anos depois de Portugal e receberam muito menos fundos estruturais do que nós. A realidade é esta e é muito dura.

Tendo em conta este quadro de grande exigência, mas também ciente da oportunidade estratégica que se abre ao país como os novos fundos do Portugal 2030 e do PRR, o PS tem a obrigação de se apresentar às eleições legislativas de 30 de janeiro, com um programa eleitoral que aposte numa agenda de transformação progressista e reformista com um horizonte geracional, que se traduza em mudanças em áreas fundamentais como: o sistema político, a justiça, e educação, a saúde, a fiscalidade, a reindustrialização, a economia 4.0. Reformas que devem estar alinhadas com os três eixos fundamentais do desenvolvimento sustentável: a mobilidade social, a transição energética e a transição digital.

O grande desafio com que nos confrontamos enquanto comunidade multissecular é se Portugal é capaz de ser autossuficiente, se é capaz de quebrar o ciclo de dependência externa que dura há mais de cinco séculos, se é capaz de construir um paradigma de desenvolvimento para o século XXI e para além dele. Essa é a convocatória urgente a que o país tem de responder. E é esse o grande desafio civilizacional a que o PS terá de dar resposta cabal se quiser liderar o futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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