Um país com medo de si próprio?

A proposta era simbólica mas com uma mensagem muito importante. A mudança do Tribunal Constitucional daria expressão efetiva à preocupação com a coesão territorial, tantas vezes enunciada, e outras tantas desconsiderada, em medidas concretas de política pública.

O que estava em causa na proposta de mudança de localização do Tribunal Constitucional para Coimbra que a Assembleia da República reprovou, não era nada de revolucionário. Não era parte de uma reforma estrutural para o país. E nem sequer podia ser considerada uma efetiva medida descentralizadora de base territorial, porque não constituía qualquer partilha de competência com outro órgão no sentido de tornar as decisões mais próximas dos cidadãos. Tratava-se sim de uma mera deslocalização, uma desconcentração da sede de um organismo do Estado, no caso um órgão jurisdicional, de Lisboa para outra cidade do país.

A proposta era simbólica mas com uma mensagem muito importante. Num país que mantém um centralismo acentuado, quer nos estejamos a referir ao nível de governo em que as decisões são tomadas, ou às próprias dinâmicas económicas e sociais concentradas em torno da área metropolitana da Lisboa, a mudança do Tribunal Constitucional daria expressão efetiva à preocupação com a coesão territorial, tantas vezes enunciada, e outras tantas desconsiderada, em medidas concretas de política pública.

No fundo, assumir-se-ia que um órgão nacional, cuja existência e competência é transversal a todo e qualquer ponto do país, pode não estar localizado na capital. E há muitos outros exemplos em que a mesma solução podia ser adotada. Em Lisboa não é significativo o impacto da saída de alguns organismos públicos. Noutras localidades, a sua chegada, não resolvendo por si só nenhum problema, teria a relevância da promoção de novas centralidades, físicas e simbólicas, que reforçariam aqueles territórios em favor de um maior equilíbrio nacional.

Mas esta é uma premissa complexa e que ainda não conseguimos ultrapassar. Recorde-se a deslocalização de Secretarias de Estado no Governo liderado por Pedro Santa Lopes, tão criticada em 2004 e retomada parcialmente em 2019 já sem dramatismos. Depois houve o caso deprimente da discussão em torno da eventual mudança do Infarmed para o Porto. E agora este debate em torno da situação do Tribunal Constitucional, que recordaremos até à próxima proposta no mesmo sentido, que alguém fará lá mais à frente.

Sobre a posição dos próprios juízes releva-se que subsista enraizada a ideia de desprestígio associada a qualquer deslocação para fora da capital, ela própria carregada de um provincianismo que pensaríamos já ultrapassado. E aqui é preciso destacar a lição de realidade que a juíza Conselheira Mariana Canotilho acrescenta em declaração de voto contra o parecer do Tribunal Constitucional: “...não há um centímetro quadrado de território da República que seja indigno de albergar o Tribunal, ou que implique, de alguma maneira, a sua menorização”, acrescentando ainda que “...qualquer argumentação da qual se possa depreender o contrário é um insulto aos cidadãos portugueses, da qual me demarco com firmeza”. Eu acompanho-a, cara juíza.

E o que dizer dos 46% dos deputados que optaram por se abster, no momento da votação da proposta? Não têm opinião formada sobre o assunto, ou quiseram mesmo dar voz à resistência a qualquer mudança neste sentido? É revelador que uma proposta de acolhimento de uma direção geral desconcentrada da Comissão Europeia em Lisboa seja aplaudida e apoiada por todos em São Bento, mas que o mesmo não seja entendido e bem acolhido à escala nacional.

Para uns e outros é preciso dizer que, findo o debate, Coimbra ficará bem sem o Tribunal Constitucional, Coimbra como alegoria de um país que não vive na capital. Não ajudaram nem ao reforço do prestígio do órgão, nem a contrariar um dos profundos desequilíbrios do país, o das injustiças e iniquidades territoriais. E vão vos fazer falta os bolos de Ançã, as queijadas de Pereira ou os pastéis de Tentúgal. Disso não duvidem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 1 comentários