Protecção de Dados diz que bodycams, câmaras em drones e tratamento de dados biométricos são inconstitucionais

Comissão diz que a lei é “um ‘cheque em branco’ à intrusão na vida privada dos cidadãos” e que permite a “vigilância em massa no espaço público e nos espaços privados de acesso ao público”.

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Comando metropolitano da PSP da Amadora Nuno Ferreira Santos

É uma lista de pelo menos meia dúzia de inconstitucionalidades aquela que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) encontra na proposta de lei que alarga o âmbito do uso da videovigilância pelas forças e serviços de segurança. Pretende-se criar um regime jurídico “muito restrito dos direitos fundamentais dos cidadãos”, em especial no respeito pela vida privada e familiar e no direito à protecção de dados pessoais”, diz a comissão.

Serão inconstitucionais as normas que permitem o uso das câmaras portáteis de fardamento (as chamadas bodycams) e das colocadas em drones, assim como a recolha e tratamento de dados biométricos através de um sistema de gestão analítica de dados, a captação de imagens sem gravação sem justificação, e ainda as justificações gerais do uso da videovigilância devido à “elevada circulação ou concentração de pessoas” ou à “elevada probabilidade de ocorrência de factos qualificados pela lei como crime”.

No parecer enviado ao Parlamento, a Protecção de Dados diz que a proposta de lei representa “um ‘cheque em branco’ à intrusão na vida privada dos cidadãos, como se o facto de se encontrarem em espaços públicos ou de acesso ao público implicasse a automática negação dessa dimensão humana fundamental”. Para além de permitir o uso de tecnologias de inteligência artificial, em especial de reconhecimento facial, sem regras especiais, na “aparente ignorância dos riscos de erro e de discriminação que da sua utilização podem resultar”.

Esta avaliação da Comissão Nacional de Protecção de Dados vem juntar-se à da Procuradoria-geral da República que, num parecer sobre a mesma proposta de lei também admitiu que esta pode ter preceitos inconstitucionais.

“Sem controlo prévio independente”

O diploma proposto pelo Governo tem normas imprecisas, sem definir limites de utilização das tecnologias e “sem controlo prévio independente” - por isso, suscita à CNPD “a maior das apreensões”. A comissão afirma que há artigos que “se afiguram ser inconstitucionais” por serem uma “violação grosseira do princípio da proporcionalidade” já que representam “restrições a direitos, liberdades e garantias, máxime dos direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e familiar e à protecção de dados pessoais”.

“A proposta de lei, no conjunto das suas disposições, introduz um regime jurídico muito restritivo dos direitos fundamentais dos cidadãos, em especial dos direitos ao respeito pela vida privada e familiar e ao direito à protecção de dados pessoais, susceptível de afectar o conteúdo essencial do direito ao respeito pela vida privada, ao permitir a vigilância em massa no espaço público e nos espaços privados de acesso ao público”, aponta a CNPD.

Num longo e crítico parecer, a Protecção de Dados conclui que os “termos amplos e imprecisos com que vem prevista a utilização, pelas forças e serviços de segurança, de sistemas de vigilância através de câmaras fixas e câmaras portáteis [em drones ou bodycams], indefinidamente para qualquer das finalidades admitidas na proposta, com a possibilidade generalizada de utilização de tecnologias de inteligência artificial e de reconhecimento facial, não cumpre as exigências mínimas num Estado de direito democrático para a restrição legislativa de direitos fundamentais”.

Sobre o âmbito da utilização, no terreno, da videovigilância, a CNPD diz ser “duvidoso” que o mero facto de um local público ou de acesso público ter “elevada circulação ou concentração de pessoas seja suficiente para afirmar a necessidade de protecção de pessoas, animais e bens”. E acrescenta que o pressuposto da “ocorrência de facto susceptível de perturbação da ordem pública” é “demasiado amplo” e não justifica o uso de “meios que podem revelar-se altamente intrusivos” na vida dos cidadãos. “Apenas em determinadas circunstâncias bem delimitadas poderá [a videovigilância] servir as finalidades de prevenção e repressão de ilícitos de mera ordenação social.”

Drones e bodycams sem condições nem limites

Sobre o uso de câmaras portáteis (drones e de fardamento) a CNPD critica que deixe de ser necessária a consulta prévia à comissão lembrando que é este tipo de câmaras que “têm revelado as maiores dificuldades no cumprimento dos requisitos” legais. E também discorda do aumento de dois para cinco anos do prazo da autorização para os sistemas de videovigilância, considerando que isso é abandonar o princípio de excepcionalidade e de necessidade temporal que devia ser a regra da videovigilância.

Sobre as câmaras portáteis, a comissão diz que “não se fixam quaisquer condições ou limites específicos para a utilização de câmaras portáteis quando incorporadas em drones, como se fosse similar, sequer comparável, o impacto sobre a vida privada de uma câmara transportada por um agente que circula na rua ou transportada numa embarcação em alto mar e uma câmara que sobrevoa a determinada altitude e com nenhuma ou muito reduzida percepção de tal facto por parte dos transeuntes, as ruas de uma cidade, as praias, os jardins públicos e, porventura, os jardins e terraços privados. Aliás, com aptidão também para voar num plano nivelado com prédios, captando imagens do interior dos edifícios que podem ser habitações.”

E cita a exposição de motivos da proposta de lei, que especifica que a intenção é utilizar as câmaras em sistemas de aeronaves não tripuladas na “actividade diária” das forças de segurança. Para a CNPD, isto mostra que o objectivo do Governo é “vulgarizar ou generalizar o uso de drones para vigiar os cidadãos, sem delimitar o seu uso a finalidades específicas e independentemente da sua efectiva adequação e necessidade, secundarizando o impacto nos direitos fundamentais”.

Sobre as câmaras portáteis de uso individual pelos polícias, a Protecção de Dados compreende que se pretenda o seu uso para a recolha de prova relativa a condutas dos agentes e dos cidadãos que com estes interajam. Mas diz que o texto não especifica quando é que o agente tem que informar o membro do Governo – se quando lhe é atribuída uma câmara ou sempre que vai entrar em acção policial.

Tal como também é omisso sobre quem toma a decisão de activar a bodycam – e se esse poder couber ao agente, então ele é discricionário. Ou seja, não se acautela o risco ou a probabilidade de o agente não querer que seja gravada parte ou a totalidade da sua acção, nem se determina se as imagens e sons são transmitidos em tempo real ou se ficam gravados no equipamento na posse do agente e, assim haver risco de manipulação ou eliminação das gravações.

Outra matéria criticada pela CNPD é a possibilidade de captação de imagens sem gravação, mas exclusivamente para visualização em tempo real, assim como o acesso remoto a sistemas de videovigilância de entidades públicas ou privadas, exigindo que se defina em que condições esse acesso pode ser feito.

Dados biométricos sem critérios nem condições

Ao incluir a permissão de tratamento de dados através de um sistema de gestão analítica de dados captados e o tratamento de dados biométricos, o Governo pretende, de uma “forma subtil e encoberta”, admitir a incorporação de tecnologia de reconhecimento facial nos sistemas de videovigilância em espaço público. Mais: “Não se trata apenas da captação da imagem da pessoa e da análise de dados biométricos (como a forma de andar), mas da criação de um template biométrico do seu rosto.”

“Trata-se, na realidade, de dar luz verde à vigilância em massa pelas forças e serviços de segurança, negando qualquer dimensão de privacidade que ainda pudesse restar no espaço público”, o que permite o “rastreamento dos cidadãos”, afirma o parecer. “Sendo evidente o impacto que tal controlo pode ter sobre qualquer sociedade democrática, pela facilidade com que esta ferramenta é utilizável como meio de repressão das liberdades de expressão, de manifestação e de reunião, como exemplos recentes noutros pontos do mundo o têm demonstrado.”

A Protecção de Dados salienta que não há qualquer indicação das condições e critérios de uso das tecnologias analíticas de dados e do reconhecimento facial, tal como também não se explica se os dados biométricos vão constar de uma base de dados centralizada e quem será o responsável por esse sistema de informação.

Governo não conhece a realidade dos actuais sistemas de videovigilância

A comissão critica ainda o Governo por optar pelo “aligeiramento do regime de videovigilância para fins policiais (…) para facilitar a sua utilização independentemente de uma efectiva e circunstanciada avaliação da sua adequação e necessidade (…), bastando a alegação de uma suposta sensação de insegurança”. Além disso, a CNPD afirma que o Executivo propõe uma nova lei aparentando nem sequer conhecer as “efectivas condições de utilização” actual dos sistemas de videovigilância pelas forças de segurança.

Conta, por isso, que nas acções de fiscalização tem verificado que não são cumpridas as normas sobre o tratamento de dados pessoais, que não há controlo efectivo do acesso às salas de visualização e de controlo das câmaras – num dos sistemas, a sala usada como data center é o corredor de passagem para o vestiário dos agentes, ou seja, sem qualquer segurança -, que os perfis de acesso a todo o sistema nem são da PSP mas sim dos trabalhadores das empresas que prestam assistência técnica; que há sistemas a funcionar na rede de internet do município e não numa rede própria; que nenhum sistema tem backups; que as máscaras de locais privados (portas, janelas, varandas) nem sempre funcionam; que há quem guarde fotografias e vídeos indevidamente, entre outros problemas.

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