Mentira à tona

O passado teima em clarificar-nos o presente. Há coisas que se tornaram límpidas e também sou grata por isso.

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"Lido muito mal com a falta de verdade" Mag Rodrigues

A minha mãe deixava-nos poucas vezes sozinhos. É difícil pensar numa mãe mais presente. O meu maior conforto — as crianças não medem o egoísmo — era saber que podia chamá-la a meio da noite e ela viria em meu socorro.

Em mais um exercício de memória lá está ela ao meu lado independentemente do cenário. Sorrio ao lembrar-me dos tempos em que chegava da escola e todos os dias tinha os meus pratos preferidos à espera. Era um prazer de ambas, creio, mas a adulta que sou reconhece-lhe muito mais valor agora. A nossa carência desmedida na infância não nos permite avaliar bem os passos que os outros dão por nós, ao nosso lado. Sou mãe e vejo agora tudo muito melhor como se o tempo me tivesse ajustado as dioptrias numa consulta necessária.

O passado teima em clarificar-nos o presente. Há coisas que se tornaram límpidas e também sou grata por isso.

Numa dessas vezes em que ficámos sozinhos, contando com a ida demorada da minha mãe ao Porto, fizemos (como era hábito) uma asneira. Íamos remexer nas gavetas que cheiravam aos sabonetes grandes que tinham ficado de um outro Natal: Eram grandes, ovais, embrulhados em papel bonito. Eu abria as gavetas e ficava muito tempo a cheirá-los. Também era conforto. Sinto esse perfume subtil como se fosse agora.

Remexíamos nas gavetas, víamos as mesmas fotografias de sempre, entornava frascos cheios de botões. Fazíamos o que o tempo permitia. Teremos subido ao telhado um dia sem contar que a minha mãe chegasse tão cedo…

Numa dessas desarrumações, a mando da nossa curta insurreição, partimos um frasco sem grande importância, mas era uma prova de que tínhamos ido demasiado longe. E sabíamos que esse pequeno acto teria o seu preço.

Um grito mudo de sobrevivência obrigou-nos a esconder os vidros partidos. Penso que havia uma tampa. Não chego a tanta clareza. O episódio ganhou relevância mais tarde.

Nesse dia, a minha mãe chegou a casa e nada havia para contar, afinal tínhamos enterrado a prova do nosso deslize no nosso quintal insuspeito onde tanta natureza crescia ocultando pequenos crimes que a infância encobre. Sei do medo que senti e de como eu e o meu irmão inconscientemente medimos cada palavra para não escancararmos a verdade.

Muitos dias depois, não sei precisar quantos, quando a chuva chegou e já eu tinha lavado do pensamento esse deslize, o frasco, à força da terra ensopada, emergiu da nossa sepultura incipiente. Estava ali acenando-nos e a minha mãe facilmente detectou a nossa mentira flutuante. Eram só meia dúzia de cacos sem união mas que sublinhavam a pequena mentira. E uma pequena mentira pode encobrir outra e mais outra e quem sabe definir-nos o carácter.

Não sei se houve castigo, mas houve qualquer coisa que me faz lembrar até hoje essa mentira à tona. Ali mesmo em frente aos nossos olhos quando o pensamento já a tinha levado.

Lido muito mal com a falta de verdade. Algo se quebra em mim quando descubro que alguém que me é próximo mentiu. A mentira é uma artimanha feia que revela cobardia e fraqueza e eu habituei-me a ser seduzida pela verdade.

O frasco em bocados a boiar no nosso quintal inundado é uma imagem que terei para sempre enquanto me lembrar do que fui. Porque a analogia é perfeita para nos sublinhar que a verdade, cedo ou inesperadamente, vem sempre à tona.

Quando insisto em basear a minha vida numa crença a que chamo justiça divina, tem a ver com tudo isto. Com essa verdade que por mais que a tentemos ocultar, virá sempre ter connosco.

A mentira quebra-nos o carácter em pedaços como aquele frasco sem importância que um dia guardámos erradamente.

A verdade é tão libertadora e aqui estamos nós, adultos, a viver num mundo de várias ilusões ainda que cada um saiba, no seu íntimo, das mentiras que pregamos primeiro a nós próprios. Depois aos outros.

Era só um frasco partido. Ainda o vejo à tona.

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