A realidade e a Ordem dos Advogados

Numa sociedade onde há licenciados, mestres e até doutores nas mais variadas áreas profissionais, incluindo na advocacia, que recebem ordenados de 800 euros, onde o valor do trabalho é quantificado apenas tendo em conta os lucros de quem o paga, esta afirmação não tem qualquer relação com a realidade.

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Nuno Ferreira Santos

No dia que antecede a manifestação nacional dos estudantes de Direito contra a proposta de alteração ao Estatuto da Ordem dos Advogados, manifesto a minha solidariedade por todos os que lutam pela democratização do acesso à profissão e também do seu exercício. A alteração que a Ordem dos Advogados (OA), nomeadamente o Conselho Geral, advoga para o acesso à profissão, exigindo grau de mestre, doutor ou licenciatura pré-Bolonha configura um autêntico golpe para centenas de licenciados em Direito pós-Bolonha, que irão ser forçados, caso a alteração proceda, a ingressar e concluir o mestrado, ou seja, o segundo ciclo de estudos, para poderem aceder ao curso de estágio da OA e assim almejarem obter o estatuto profissional de advogado.

Ora, o que é defendido pelo senhor Bastonário não poderia estar mais desfasado da realidade de um país onde as licenciaturas são caras e os mestrados não têm tecto máximo de propina. Aliás, contas feitas, um jovem para poder ser advogado passará a ter, após a conclusão do ensino obrigatório, um período de formação de sensivelmente oito anos, conjugando licenciatura, mestrado e o curso de estágio da OA, o que é, claramente, um absurdo.

O senhor Bastonário defende a medida, reiterando que esta não contribuirá para o aumento da precariedade. Afirma: “Ao exigir-se uma formação mais adequada dos candidatos à advocacia, assegura-se que os candidatos terão muito melhor qualificação e, por isso, o valor do seu trabalho será maior, reduzindo-se assim a precariedade.” Esta afirmação talvez tenha algum rasgo de realidade num país que não este; num país que, muito provavelmente, não existe.

A realidade é que esta tendência da Ordem dos Advogados e seus representantes de se colocarem à margem da sociedade e dela não terem um travo de realidade afasta a instituição do país real onde os advogados e advogados estagiários exercem a sua profissão. Numa sociedade onde há licenciados, mestres e até doutores nas mais variadas áreas profissionais, incluindo na advocacia, que recebem ordenados de 800 euros, onde o valor do trabalho é quantificado apenas tendo em conta os lucros de quem o paga, esta afirmação não tem qualquer relação com a realidade.

É por demais evidente que esta alteração tem como único propósito limitar ainda mais o acesso à profissão numa tentativa de ultima ratio de manter o que resta do elitismo de uma profissão que tem sido manifestamente mal representada. Mais uma vez, a realidade é algo duro para os olhos de quem vê a advocacia como o privilégio de uns e não como um direito de todos. Mas o facto é que são cada vez mais os filhos de operários a ingressar na advocacia, muito graças ao ensino superior público que ainda vai garantido, apesar de muitas dificuldades, que os altos graus de ensino sejam acessíveis a todos. A proletarização da advocacia é uma realidade e, espantem-se, não é uma coisa má, antes pelo contrário. Aos tribunais e à justiça faz falta que os seus agentes sejam do mais heterogéneo possível e que não se componham apenas com a franja da sociedade que tem condições económicas para aceder a estas profissões.

É também importante salientar que o facto de um licenciado obter o grau de mestre, não corresponde, per si, a uma maior competência para o exercício da advocacia. Isto porque são inúmeros os mestrados na área do Direito que em nada contendem com o exercício da advocacia, focados, a título de exemplo, nos aspectos filosóficos ou económicos que penetram a área. É, portanto, uma argumentação falaciosa aquela que se arremessa para defender esta alteração, que em nada tem que ver com a formação dos advogados, mas sim com a limitação de acesso a esta profissão.

Na verdade, esta alteração é apenas mais um dos muitos entraves que têm sido colocados aos licenciados em Direito para almejarem a advocacia. Disso é exemplo o valor pornográfico que um advogado estagiário tem de pagar em emolumentos à OA no decurso do seu estágio, valor que ascende, sensivelmente aos 2000 euros. Isto enquanto têm de se sujeitar a um estágio que não é, na sua esmagadora maioria, remunerado, e exige horário e trabalho que é feito sem qualquer contrapartida. Ora, não é admissível que esta profissão esteja condicionada a tamanhos entraves quando o acesso e o direito à profissão são um princípio estruturante do Estado de Direito, assegurado, aliás, pela Constituição da República Portuguesa.

É por isso importante que os estudantes de Direito lutem contra esta realidade, mas também os advogados estagiários e os advogados, todos com a responsabilidade de moldar esta profissão e de a transformar num verdadeiro farol dos direitos de todos e não como um pretenso privilégio de alguns.

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