Clarence, a silly season e o intermezzo do absurdo. O MCTES e a Educação Médica

Não interessa escalpelizar as causas das disfunções no SNS, a sua falta de atractividade para as novas gerações. Tudo é linear e simples para os políticos que nos governam. Há um culpado identificado: os médicos e o seu corporativismo. Tudo se resolveria pelas leis do mercado livre, pelo jogo da oferta e procura: façam-se mais médicos que perante o espectro do desemprego tudo aceitariam.

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REUTERS/Benoit Tessier

Há um ano citei este personagem, criação de PG Wodehouse em 1909, para divertimento da silly season. Remeto-o caro leitor a esse artigo, publicado neste jornal.

Neste fim de verão 2021, pandemia ainda não vencida, não obstante o sucesso do Programa de Vacinação, deparo-me com o regresso do absurdo — Clarence again? — pela proposta de mais três cursos de Medicina para 2023. As instituições representativas, Conselho Nacional das Escolas Médicas, Ordem dos Médicos e responsáveis de faculdades de Medicina já tornaram pública a sua oposição fundamentada a esta proposta do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), com as quais me identifico e, como cidadão informado destes assuntos por dever de ofício, me solidarizo.

Interroguei-me se seria legítimo voltar a usar o humor como contraponto para uma decisão política com a qual se discorda. Para isso, era preciso que essa proposta fosse um absurdo, um faux-pas, comum em fim de verão. Mas creio que não foi isso, por várias razões. A primeira, porque o senhor ministro é uma personalidade estimável e um homem inteligente cuja obra de impulso à Ciência feita em Portugal e à sua internacionalização é relevante. E não se lhe conhecem decisões por impulso ou entusiasmo pré-eleitoral.

A segunda, é que não existe vazio político de fim de verão, há questões muito sérias que preocupam a cidadania empenhada e certamente os decisores políticos.

A terceira, é que nem a estratégia de promessas em vésperas de sufrágio — seja ele qual for — se aplicará a uma área tão específica como o ensino da Medicina e a formação dos médicos, na qual o MCTES se expande em considerações francamente erradas. Só encontro uma explicação: o sr. ministro privilegiou informação inadequada e incompleta, ladainha conhecida para explicar os males que, não obstante as sucessivas promessas e os anos de governação do PS, persistem na Saúde:

i) um milhão de portugueses sem médico de família;

ii) concursos parcialmente vazios mesmo nos distritos de maior carência;

iii) listas de espera para consultas, rastreios e cirurgias.

Porquê? Não interessa escalpelizar as causas das disfunções no SNS, a sua falta de atractividade para as novas gerações. Tudo é linear e simples para os políticos que nos governam. Há um culpado identificado: os médicos e o seu corporativismo, as suas instituições representativas. E curiosamente, bem ao arrepio da ideologia política dominante, tudo se resolveria pelas leis do mercado livre, pelo jogo da oferta e procura: façam-se mais médicos que perante o espectro do desemprego tudo aceitariam. Quem diria?

A Educação Médica tem três dimensões: a pré-graduação ou curso de Medicina da responsabilidade das Escolas Médicas, a pós-graduação, que consiste na aprendizagem de uma especialização que é certificada pela Ordem dos Médicos e que decorre nos Centros de Saúde e Hospitais, maioritariamente dependentes do Ministério da Saúde, e a Educação Médica Continuada, também designada por Desenvolvimento Profissional Continuado, que é uma responsabilidade individual do profissional, mas requer a cooperação das instituições de ensino, investigação e prática clínica.

Por isso, o Ministério da Saúde que tutela o SNS é um parceiro fundamental em todo o processo de Educação Médica.

O divórcio entre os decisores políticos e as profissões da Saúde, a sua cultura profissional, a sua opinião fundamentada e as exigências e requisitos duma Educação Médica para o século XXI tem sido bem evidente. Visão conjunta e abrangente dos dois ministérios? Não seria expectável que houvesse pensamento e directivas sobre tão importante assunto e que tivessem sido discutidas previamente com as instituições próprias? A pandemia com os desafios únicos aos métodos tradicionais de Educação, Medicina incluída, e a transformação digital que se prefigura são uma oportunidade.

Porque é que isto acontece? O que falhou? A mensagem que ao longo destes anos as instituições têm procurado transmitir? Os mensageiros? Por não pertencerem ao inner circle político?

Nem sempre foi assim, e a memória nem sempre é uma maldição. Há anos, as escolas médicas e a FMUL que então dirigia, aceitaram o desafio proposto pelo ministro Mariano Gago para aumentar em 15% o número de vagas para Medicina — cerca de 40 alunos a acrescentar aos 300 que entravam pelo contingente geral. A proposta era lógica e encontrou eco favorável. Na FMUL a experiência correu bem, desde a entrevista pessoal aos candidatos que ultrapassavam a fieira dos requisitos curriculares iniciais, à avaliação feita pelos serviços, que demonstrou que as suas classificações eram equiparáveis às dos alunos do contingente geral. Uma boa medida e que teve continuidade.

A outra iniciativa foi a do Centro Académico de Medicina congregando a faculdade, o seu Hospital (HSM) e o Instituto de Investigação (IMM). Mariano Gago e Ana Jorge, à época ministros do Ensino Superior e da Saúde, apoiaram e ratificaram em Portaria conjunta no Diário da República a sua constituição. As vicissitudes da política e a crise financeira atrasaram decisões necessárias para robustecer o projecto. Mas em 2015, já em fim de ciclo político do governo em exercício, foi adoptado e generalizado às Escolas Médicas e seus hospitais de ensino, mudando a nomenclatura. Em 2016, no teatro Thalia já com o novo governo socialista, numa reunião com os ministros da Saúde e do Ensino Superior foi solicitado sinal inequívoco de apoio. A filosofia subjacente era clara: a Educação Médica era uma responsabilidade comum dos dois ministérios e impunha exigência científica, competência profissional e qualidade pedagógica. Eram os requisitos para que o conceito então denominado Centro Académico Clínico pelo MCTES ou Centro Hospitalar Universitário pela Saúde (mais uma peculiaridade nacional) fosse efectivo e cumprisse a sua missão.

Continua uma tarefa por realizar, um desideratum por concretizar. Por isso, não basta invocar a denominação – como o sr. Ministro agora fez– para que todas as instituições cumpram os requisitos necessários a uma Educação Médica séria, eficaz e para o Futuro. 

O argumento da carência de médicos não colhe. Será que todos, das faculdades, à Associação dos Estudantes de Medicina de Portugal, Ordem dos Médicos, que sempre se opuseram a esse argumento, estão enganados e persistem no erro?

Há um ano discutia-se a resposta privada como solução. Escrevi então, como outros, que abertura para novas iniciativas com qualidade reconhecida — e esse era o cerne do problema — poderia também ser um desafio às instituições públicas. Desde que tivessem condições efectivas e autonomia. Necessidade olimpicamente ignorada.

A pandemia trouxe mudanças significativas até na Educação Médica, do ensino à distância, às modernas tecnologias de informação e aprendizagem, que acentuaram a necessidade de alargar a diversidade de oferta clínica disponível para o ensino. As escolas médicas fizeram um enorme esforço de adaptação, o qual precisa de ser apoiado e estimulado. Mas há uma dimensão da Medicina que só se aprende praticando, vendo e contactando doentes, desenvolvendo a capacidade de interpretação das suas queixas, fomentando a empatia sem a qual o êxito da nossa intervenção se esfuma na recusa ou na indiferença do doente. Talvez fosse agora o tempo para robustecer os programas de afiliação institucional, como se tem feito na FMUL e noutras escolas, suscitando colaboração de instituições hospitalares e ambulatórias para a Educação Médica. E seria uma boa iniciativa conjunta dos dois ministérios.

A infeliz justificação usada para a Medicina Geral e Familiar — aggiornamento dos médicos pé-descalço da revolução cultural chinesa? — é bem a expressão de como a Educação Médica está longe das preocupações dos políticos e da informação que dispõem. Não merece mais comentários. É uma tristeza e uma preocupação.

Por tudo isto, a minha surpresa por mais três cursos de Medicina. A experiência ensinou-me que nada acontece por acaso, ou melhor citando Henri Poincaré, o acaso é apenas a medida da nossa ignorância! Como não acredito que nenhum ministro de qualquer governo assuma o ónus de desvalorizar a Educação Médica, penso, caro leitor, que não foi um acaso infeliz. Pelo contrário, deve enquadrar-se nas iniciativas já anunciadas de controle das ordens profissionais, na redução dos critérios de exigência nas carreiras profissionais e sobretudo para os lugares de chefia, quantas vezes atribuídos por outras razões que o mérito, na desvalorização profissional e remuneratória dos médicos, na luta contra o que infelizmente foi designado Poder Médico.

Como se a Boa Medicina fosse apanágio exclusivo de administradores e políticos e pudesse dispensar os bons médicos.

Serão estas as explicações para mais este intermezzo do absurdo?

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