Alterações climáticas: O dia em que saí de casa para ver o futuro

As mensagens do último relatório do IPCC são tremendamente simples. Nos próximos 20 anos, o aquecimento do planeta atingirá 1,5 graus independentemente do que fizermos, com todas as catástrofes associadas. Mas, se cortarmos as emissões derradeiramente, os cientistas acreditam que será possível evitar os piores cenários deste fenómeno.

2018: era o primeiro sábado de Agosto e Portugal vivia uma onda de calor. Por coincidência, estava a escrever para o PÚBLICO sobre um estudo científico que avançava com a hipótese de a Terra poder se tornar numa estufa quente, num futuro próximo, mesmo se todas as fábricas do mundo parassem de trabalhar imediatamente. O trabalho alertava para uma série de efeitos em cadeia do sistema terrestre que, uma vez iniciada devido aos gases com efeito de estufa, não teria mais volta. A hipótese era alarmante.

Para complementar, uma das minhas leituras era um artigo de dezenas de páginas do jornal norte-americano New York Times, publicado dias antes, que relata como os Estados Unidos estiveram quase a assinar um acordo climático mundial sobre a limitação de emissões de gases com efeito de estufa, depois de uma década de trabalho de vários cientistas, e acabaram por não o assinar e bloquear as negociações no último minuto. Isto em 1989, durante os anos de George Bush pai. O artigo chama-se “Losing Earth: the decade we almost stopped climate change”, escrito por Nathaniel Rich, e vale cada minuto de leitura mais o banho de realidade das últimas páginas que mistura política, desconfiança pela ciência e uma boa dose de mentira e ganância. Estaríamos noutro mundo se o desfecho dessas negociações tivesse sido positivo.

Com tudo isto em mente, saí de casa para ter um vislumbre de um futuro cada vez mais provável. Em Lisboa, as temperaturas estavam acima dos 40 graus, como se fosse o interior alentejano num dia de muito calor. Durante a caminhada, os olhos ficaram secos rapidamente e havia uma espécie de torpor condensado à minha volta, carregado e quente. Quando penso no corpo do Antropocénico, é essa a minha referência: olhos secos e torpor. É um corpo que necessita de esticar os seus limites fisiológicos e adaptar-se magicamente a novos extremos... Depois de uma caminhada pelo bairro, acabei por entrar no Jardim da Estrela e tirei uma fotografia ao dragoeiro, que é tão bonito. Quem não fica grato pelas árvores e as suas sombras num dia assim?

De lá para cá as fábricas não pararam de trabalhar e a concentração na atmosfera de dióxido de carbono, o principal gás emitido pela actividade humana com efeito de estufa, continuou a subir a um ritmo inabalável. E, no entanto, tivemos o que testemunhar: incêndios terríveis, da Austrália à América do Norte, furacões incessantes, ondas de calor que os modelos climáticos não anteciparam, a subida do nível do mar, o fim de glaciares, secas várias, dilúvios, vítimas. Gente que morreu. Ou que perdeu a casa, ou que perdeu o trabalho, ou que perdeu a terra que antes lhe dava de comer, ou que perdeu o mundo que conhecia: gente desolada. Recentemente, vivemos (estamos a viver) ainda uma pandemia que, com todo o seu horror, mostrou-nos por breves momentos que o ar das grandes cidades pode ser respirado com prazer e que basta entreabrir a porta à natureza que ela entra rápida e pronta, sem mágoas. São todas memórias que nos acompanham.

Escrevo tudo isto em reacção à primeira das três partes do 6º relatório sobre as alterações climáticas, publicado a 9 de Agosto, pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, que dá conta da situação do clima na Terra. As mensagens deste relatório são tremendamente simples. O planeta já aqueceu um grau Celsius devido às emissões dos gases com efeito de estufa provenientes da actividade humana. Nos próximos 20 anos, esse aquecimento atingirá 1,5 graus independentemente do que fizermos, com todas as catástrofes associadas. Há já consequências das alterações climáticas irreversíveis nos próximos séculos a milénios. Mas, se cortarmos derradeiramente as emissões, os cientistas acreditam que será possível manter o aumento de temperatura abaixo dos dois graus no fim do século, evitando os piores cenários deste fenómeno. Se não o fizermos, a temperatura aumentará, grão a grão, a cada tonelada de dióxido de carbono libertada para a atmosfera.

Aqui, o relatório revela-nos uma aritmética interessante. Um exemplo: fenómenos de temperaturas extremas, que entre 1850 e 1900 aconteciam uma vez a cada dez anos, hoje, com um grau Celsius a mais, serão 2,8 vezes mais frequentes. Quando a temperatura subir para 1,5 graus, poderão ser 4,1 vezes mais frequentes, se a temperatura subir dois graus, poderão ser 5,6 vezes mais frequentes e se subir quatro graus poderão ser 9,4 vezes mais frequentes – ou seja, acontecerão, em média, praticamente todos os anos. Este tipo de lógica servirá para outros fenómenos associados às alterações climáticas, como a subida média do nível do mar ou os fenómenos de chuva extrema. O que significa que quanto mais cortarmos na emissão de gases com efeito de estufa, menos catastróficas serão as alterações que vamos viver e vice-versa.

Como referi, é um relatório cheio de mensagens simples, mas é uma simplicidade colhida de décadas de investigação feita por milhares de cientistas, ela só é possível pela dedicação profunda de tanta gente a um tema tão complexo. As mensagens também são simples porque muitos dos fenómenos, com o passar do tempo, estão a tornar-se absolutos, de fácil comprovação. Parecem tocar-nos nos dedos das mãos com o decorrer de tantas catástrofes, como aquelas que têm tido lugar nos últimos meses no Hemisfério Norte.

O relatório também se apresenta como derradeiro. Ou seja, é o último em que vamos a tempo de evitar as piores tragédias causadas pelas alterações climáticas, se iniciarmos agora uma inversão mundial, contundente, da forma como estamos a produzir energia. De contrário, se não avançarmos já com uma redução decidida das emissões dos gases com efeito de estufa, quando o sétimo relatório do IPCC for publicado, algures no fim desta década, já será demasiado tarde. Continuará a ser fundamental saltarmos para um mundo que funciona à base de energias renováveis e reduzir ao máximo as emissões de gases com efeito de estufa, mas já não evitaremos as piores consequências deste fenómeno. Teremos que lidar com um planeta muito mais violento, e isso trará também uma dose de simplicidade, a simplicidade da terra seca, da terra queimada, da terra vazia, da terra inundada, que nada deve a estabilidades, produtividades, crescimentos económicos, justiças sociais e direitos humanos. E que, por sua vez, irá impor uma simplicidade mais profunda, a da morte, da fome, da fuga e do conflito. Esta é a Terra que arriscamos oferecer às crianças que nascem por estes dias – filhas, filhos, netas, netos de tanta gente –, cheia de paisagens simples e desoladoras.

Este é, portanto, um momento charneira, que não é mais do que um somatório de momentos charneira que vivemos nos últimos 30 e poucos anos, em que os países mais poderosos foram adiando uma acção verdadeira em relação a este assunto. Alguns enriqueceram muito com isso. Muita gente está mais pobre, estes serão sempre os mais vulneráveis às alterações climáticas: não poderão proteger-se da onda que vem, muito menos sonhar com uma fuga para Marte (que não passa de uma ilusão estúpida alimentada por bilionários).

Saíram nestes dias notícias sobre as conclusões de um rascunho de uma das partes do relatório do IPCC e que deverá ser publicado para o ano. Por pertencerem às Nações Unidas, estes documentos têm sempre o aval dos governos, que lêem os relatórios antes de serem publicados e podem pedir para alterar frases. Segundo o que consta, os cientistas que libertaram o rascunho, à revelia das normas, têm medo de que os responsáveis governamentais peçam para atenuar as conclusões mais graves do relatório, retirando força ao documento. Uma das conclusões escrita no rascunho sublinha que será necessário atingir o pico das emissões de gases com efeito de estufa em 2025, para que, a longo prazo, não se ultrapasse o aumento da temperatura média do globo em 1,5 graus. Ou seja, daqui a quatro anos o mundo tem de inverter a tendência das emissões, alterando radicalmente o funcionamento das sociedades. É já amanhã e a tarefa parece hercúlea.

Aqui estamos, por isso, neste presente sombrio, com múltiplos sinais de uma casa a arder, e todos os gritos de adolescentes a olharem para o futuro como quem olha para o abismo não são de mais, e todas as fotografias da Grécia em chamas não são de mais, e todas as manifestações pelo clima não são de mais, assim como todas as ideias e esforços para mudar hábitos e formas de vida, toda as acções de reflorestamento, todos os desenvolvimentos tecnológicos, todas as denúncias, todas as pressões aos governos, todas as mudanças pessoais. Não são demais. É preciso mudança. Não há espaço para o cinismo, embora o cinismo abunde. Já chega termos de lidar com o desalento e a tristeza desta realidade, que surgem em ondas, quando menos se espera, e nos sulcam.

Naquela tarde de Agosto, há três anos, depois de revolver as leituras que tinha em mãos, lembro-me que tomava conta de mim uma incredulidade nova, de quem testemunha algo impensável, mas que está em plena materialização, em pleno acontecimento. As alterações climáticas estavam aí, reveladas, entre meteorologia, história e ciência, com o peso e a responsabilidade da mão humana. Não havia saída, apenas tentar evitar os piores cenários. E nem isso era certo... Restava-me sair de casa e sorver os factos inadiáveis de uma onda de calor: os olhos secos, a penumbra do torpor, o alívio de uma sombra. Queria aprender algo com isso, queria criar uma memória, não me esquecer.

A incredulidade foi-se transformando nos meses e anos seguintes, ora enquanto choque ou desalento, cinismo ou inércia, tristeza ou raiva. Mas o mal-estar ressurgia muitas vezes quando lia notícias, e nem sempre directamente relacionadas com o tema, podia ser sobre o desaparecimento dos insectos e a perda de biodiversidade, o plástico que está a penetrar em todas as esferas do planeta, inclusivamente nos nossos tecidos, ou as consequências insidiosas para a saúde de respirarmos o ar poluído das cidades.

Agora foi a raiva que veio ao de cima depois da publicação do relatório do IPCC. O mundo está à beira de um precipício, mas expressões como “produtividade”, “crescimento económico”, “consumo”, seguem caminhando exactamente com o mesmo valor. O planeta nunca carregou com tantos humanos, mas os países continuam preocupados com a natalidade. A pandemia deixou largos segmentos da população mundial empobrecida, enquanto os bilionários nunca enriqueceram tanto como desde o início da pandemia. É revoltante. Uma mudança verdadeira do funcionamento do mundo tem de confrontar esta parede enorme de valores que nos trouxeram a esta encruzilhada. Será que é possível evitarmos o precipício? Será que há vontade real de transformação? Não sei... Espero que sim. É preciso acreditar nessa mudança, pôr a raiva a uso.

Em Novembro próximo, durante a 26ª Cimeira do Clima, em Glasgow, iremos ver o verdadeiro compromisso dos países na luta climática. De alguma forma, será possível sentir o tom com que a década se vai pintar em relação a este problema, e quais são as expectativas reais para o que nos espera. Num artigo no jornal britânico The Observer apontava-se como o tema das alterações climáticas se desvaneceu dos órgãos de comunicação poucos dias depois do relatório do IPCC ter sido publicado. Infelizmente, o tema mais importante do século não resiste dois segundos aos mais recentes números da pandemia. É também contra este silêncio que é preciso lutar.

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Incêndios na Grécia, Agosto de 2021 Alexandros Avramidis/Reuters

Escrevo a partir da sala de casa, em São Paulo, no Brasil presidido por Jair Bolsonaro. Da janela vejo apenas prédios e uma porção de céu, ora cinzento, ora mais luminoso. Oiço o trânsito denso de motas e carros que circulam nas ruas em volta e vão carregando os beirais da janela com uma fuligem escura. Este é o ar que se respira aqui. No meio de uma das maiores metrópoles da América Latina, onde se vivem precariedades que na Europa Ocidental são desconhecidas, onde a construção de novos prédios não pára, é mais difícil encontrar esperança para a luta climática. Há uns anos vim de ônibus de São Bernardo do Campo (uma das cidades do ABC que circundam a capital) para São Paulo e senti que atravessava um mar de cimento. Quilómetros e quilómetros com prédios a perder de vista, a realidade tangível de um modelo de desenvolvimento impossível de se sustentar. Um desespero só.

Felizmente, São Paulo e o Brasil são muito mais do que prédios e betão, ou do que um sujeito que promove as armas e a violência usando o polegar e o indicador, e governa como quem abre a porta para a terra queimada: quer seja a nível social, cultural e científico, quer seja a terra concreta da Amazónia. Há ainda, no Brasil, uma floresta intensa e vibrante que nos devolve um mundo cheio de potência. Há ainda os povos da floresta, sobreviventes a séculos de extermínio ocidental, cujo modo de vida protege e celebra a natureza, e são um exemplo de outra forma de estar na Terra. Há também muitas pessoas articuladas, dentro e fora das cidades, que procuram uma alternativa e não têm medo que essa alternativa penetre os seus desejos, a sua linguagem, os seus hábitos e acções, que são os materiais com que se trabalha o sonho e a realidade. Não há outra forma de transformar o mundo.

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Dragoeiro no Jardim da Estrela, em Lisboa DR

Por isso, se devo ao Brasil uma parte da minha desilusão, também lhe devo a irradiação de um sentimento mais profundo do que a raiva, mais importante do que o desalento, que contorna o dilema em que nos encontramos para se colocar em diálogo com outro tipo de fazer, com outro tipo de acção. É um sentimento que prefere ouvir o tempo do dragoeiro, a árvore que está na fotografia, do que fixar-se na memória da temperatura abrasadora daquela tarde lisboeta. Prefere dialogar com a certeza daquele tronco, a função daquelas folhas ou a razão daquela raiz. Encontra no fazer das árvores, no seu tempo, na sua atmosfera, a escolha última dos fazeres do mundo. E essa escolha não depende da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, nem da realidade que nos espera nas décadas desafiadoras que estão por vir. Essa escolha estabelece-se enquanto força ao serviço do mundo, é tarefa interminável e corre em paralelo com a urgência do momento. Devolve ao corpo a prontidão necessária para agir.

A título de posfácio – que este testemunho tornou-se maior do que o previsto –, lembrei-me de uma terráquea que viveu daqui a muitos séculos, e estabeleceu-se como embaixadora da Terra num planeta distante, chamado Urras, onde se passa parte de Os Despojados, que a escritora Ursula K. Le Guin publicou em 1974. Numa conversa, Keng, a embaixadora, confrontava o cientista Shevek, o herói desta história, cuja trama não vou contar aqui. Keng falava-lhe sobre a Terra, o seu mundo, de onde ela vinha. Apresentava-o como um exemplo do falhanço absoluto de uma sociedade. Dizia o seguinte: “O meu mundo, a minha terra, é uma ruína. Um planeta gasto pela espécie humana. Multiplicámo-nos e devorámos, lutámos até não restar nada, e depois morremos. Não controlámos nem o apetite nem a violência; não nos adaptámos. Destruímo-nos. Mas, primeiro, destruímos o mundo. Já não há florestas na minha terra. O ar é cinzento, o céu é cinzento, faz sempre calor. É habitável, ainda é habitável. Lá sobrevivemos, como vocês fazem. As pessoas são resistentes! Agora somos quase 500 milhões. Outrora fomos nove mil milhões. Ainda se podem ver as velhas cidades por toda a parte. Os ossos e os tijolos transformam-se em pó, mas os bocadinhos de plástico nunca – também nunca se adaptaram.” Estas são as suas palavras, vindas de um futuro imaginado há quase meio século. Também elas são uma memória que me acompanha. Pairam como um aviso.

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