Bárbara Virgínia, a pioneira que nunca o foi

Há 75 anos estreava a primeira longa-metragem portuguesa realizada por uma mulher: Três Dias sem Deus, de Bárbara Virgínia. A Cinemateca e o IndieLisboa marcam a efeméride com a exibição dos 26 minutos que chegaram até nós do filme

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Susana Resende

A 30 de Agosto de 1946 – faz agora exactamente 75 anos – estreava-se em Lisboa a primeira longa-metragem portuguesa dirigida por uma mulher, Três Dias sem Deus, de Bárbara Virgínia, nome artístico de Maria de Lurdes Dias Costa (1923-2015), com 102 minutos de duração. 

Mas o que se exibe segunda-feira, 30, na Cinemateca Portuguesa (Sala Dr. Félix Ribeiro, 19h), em iniciativa conjunta com o IndieLisboa marcando os 75 anos dessa estreia, é um “fragmento” de 26 minutos, sem som, que foi este ano alvo de restauro e limpeza digital com vista à sua divulgação em festivais especializados. É o único elemento que chegou até nós de um filme que fez parte do primeiro Festival de Cannes, em Outubro de 1946.

Ricardo Vieira Lisboa (Lisboa, 1991), investigador, vídeo-ensaísta, crítico (do site À Pala de Walsh) e programador (da Casa do Cinema Manoel de Oliveira e do IndieLisboa), fez a sua tese de mestrado em 2017 sobre Três Dias sem Deus. Foi o culminar de uma década de investigações espoletadas pelo terceiro volume do Dicionário do Cinema Português do crítico Jorge Leitão Ramos (Caminho, 2011), e pelas suas referências a “filmes de que nunca tinha ouvido falar, que estavam perdidos ou de que apenas subsistiam fragmentos”. “É uma história demasiado improvável: uma miúda de 22 anos fazer uma longa-metragem de ficção em Portugal em 1946, o filme ter estreia comercial, ser seleccionado pelo Secretariado Nacional de Informação para ir ao primeiro festival de Cannes? E ela nunca mais faz nenhum filme?” 

Ao PÚBLICO, no jardim do Palácio Galveias, Vieira Lisboa reconhece que o “mistério” se tornou irresistível. E não foi o único a deixar-se seduzir: outros investigadores escreveram sobre a actriz tornada realizadora, Luísa Sequeira dedicou-lhe inclusive em 2017 o documentário Quem É Bárbara Virgínia?, estreado no Doclisboa. Mas a inexistência de cópias completas do filme travou qualquer tipo de trabalho mais aprofundado sobre Três Dias sem Deus.

O programador partiu, por isso, em busca de todas as fontes existentes – revistas de cinema, jornais, arquivos institucionais – e reconstituiu não o filme mas sim o processo criativo e o contexto histórico do projecto. A história de uma professora primária enviada para Trás os Montes (interpretada pela própria realizadora), onde terá de vencer a desconfiança e a superstição dos habitantes, inseria-se na perfeição na política do regime de minimizar as influências do republicanismo e dirigir as jovens para profissões “respeitáveis” de acordo com “a moral e os bons costumes” do sistema, como o ensino ou a enfermagem. 

No entanto, Três Dias sem Deus começara como um melodrama gótico na linhagem de Jane Eyre ou Rebecca. Inicialmente, Bárbara Virgínia era apenas a actriz principal, com Raúl Faria da Fonseca a dirigir a sua própria adaptação de uma história inédita do escritor Gentil Marques, e um empresário sem experiência, Felisberto Felismino, a financiar o projecto. “Não há cinema gótico em Portugal,” diz o programador, “e de repente havia umas pessoas que viram o Rebecca, leram as coisas das irmãs Brontë e quiseram fazer um gótico à portuguesa…”

Depois de sucessivos adiamentos e já à beira da rodagem, Faria da Fonseca – “um realizador falhado cujos projectos nunca se terminaram” - abandonou o filme para ir para os EUA receber formação técnica. Felismino perguntou à sua actriz se estaria disposta a acumular a realização, e Bárbara Virgínia disse que sim. “Ela muda o tom do filme para uma visão materna da professora primária, alterações que provavelmente não são só suas porque o filme foi visado pela censura.” 

O investigador confessa que “é difícil”, a partir do fragmento existente, extrapolar quanto disso vinha de Bárbara Virgínia: “[num filme] nunca nada é cem por cento de uma pessoa, mas neste caso há aquela mistura de Raul Faria da Fonseca, Gentil Marques, Bárbara Virgínia...”. Não se trata de minimizar a sua contribuição, mas de reconhecer que não existem pontos de comparação. Bárbara Virgínia apenas fez uma outra curta posterior semi-documental - Aldeia de Rapazes, que, como sobrevive sem som nem genérico, “não temos a cem por cento certeza que seja dela”. Regressou aos palcos onde se estreara e acabaria por se instalar no Brasil, onde faria muito teatro e alguma televisão, abandonando a carreira artística depois de casar e tornando-se uma anfitriã reconhecida em São Paulo e autora de manuais de etiqueta. 

O que poderia Bárbara Virgínia ter feito se as coisas tivessem sido diferentes? Que portas poderia ter aberto? A dúvida é irresolúvel. Ricardo Vieira Lisboa aponta como a experiência de Bárbara Virgínia foi um mero acaso das circunstâncias – “e o impressionante é isso demonstrar que, a não ser só por acaso, era impossível uma mulher fazer um filme em Portugal.” Prova disso é que só depois do 25 de Abril, em 1976, é que uma mulher voltaria a ser realizadora num filme português: Margarida Martins Cordeiro, mesmo assim creditada como co-autora com António Reis, em Trás-os-Montes.

Trata-se, assim, menos de erguer Bárbara Virgínia a exemplo pioneiro e mais de permitir que a investigação recoloque as coisas no seu devido lugar na história. Três Dias sem Deus pode não ter sobrevivido ao tempo, mas isso não minimiza o seu feito. A Cinemateca recorda-no-lo, 75 anos depois da sua estreia. 

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