Um dicionário demasiado didáctico

Com a publicação do Dicionário do Cinema Português 1985-1961, que se junta aos outros dois volumes já editados - o de 1962-1988 e o de 1989-2003 -, Jorge Leitão Ramos quase dá por terminada a empreitada de compilar factos e dados sobre actores, técnicos, realizadores e filmes que compõem a nossa cinematografia, faltando apenas os correspondentes à última década. Sendo que não havia qualquer obra que reunisse toda esta informação (alguma estava dispersa num ou noutro livro e Leitão Ramos socorre-se deles, entre os quais Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português 1896-1949, de Félix Ribeiro, e O Cais do Olhar, de José de Matos-Cruz), é um trabalho meritório e necessário (e hercúleo, tendo demorado mais de 20 anos a ser concluído): quem quer estudar ou escrever sobre o cinema feito em Portugal encontrará aqui uma obra de referência. E foi sempre esse o objectivo do autor, mesmo quando não tinha intenção de cobrir toda a história do cinema português (foi a pedido do editor que se lançou aos dois últimos volumes).

Só que a parte crítica do dicionário de Leitão Ramos (que está lá e muitas vezes se resume a duas ou três linhas) deixa algo a desejar, principalmente se comparada com as elaborações ensaísticas de que David Thomson é capaz em A Biographical Dictionary of Film ou com os estudos que Bertrand Tavernier e Jean-Pierre Coursodon realizaram em 50 ans de cinèma américain. Mais, sente-se a falta de um pensamento estruturante que ajude a entender toda a informação, mesmo se o leitor fica com uma ideia de como foi o cinema português até 1961, ano da eclosão do Cinema Novo: os aventureiros que se lançaram na produção de filmes sem saberem nada do assunto e se perderam rapidamente; a tentativa de indústria da Invicta Film, que nos anos 20 trouxe para Portugal realizadores estrangeiros para edificarem o nosso cinema mudo, e abriu falência depois de o sonho de exportação se revelar tão inglório então como agora; a aproximação do cinema ao teatro de revista e ao teatro mais ligeiro, que deu origem à “comédia à portuguesa”, de que os espectadores ainda hoje guardam saudade mas que encobria as dificuldades por que muitos portugueses passavam; os pastelões históricos e as poeirentas adaptações literárias que António Ferro (o grande vilão desta história), à frente do Secretariado de Propaganda Nacional, encomendou; a “geração dos assistentes” que, na década de 50, tornou intragável o que já não era muito comestível; a geração dos modernistas que a precedeu, com nomes como António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto ou Leitão de Barros, que apesar dos defeitos tinham uma vontade de cinema que os fazia superá-los; as situações pontuais em que o cinema acontecia plenamente - A Canção de Lisboa, Maria do Mar, O Pai Tirano, A Revolução de Maio (obra de propaganda em que Leitão Ramos encontra ecos do expressionismo alemão e do cinema soviético); e o incontornável Manoel de Oliveira, figura eterna do cinema português (apetece escrever literalmente).

Claro que esta circunstância parte das decisões “editoriais” do crítico de cinema do Expresso - distinguir claramente factos (pelos quais confessa uma paixão quase obsessiva) e opiniões, como se não fosse possível que umas comentassem os outros de uma maneira mais fluída; separar as longas-metragens (listadas exaustivamente, embora muitas estejam perdidas nas memórias dos que já cá não estão) dos realizadores, dificultando a consulta e a formulação das qualidades destes últimos; o exagerado espaço dado a figuras que pouco tiveram a ver com o cinema (por exemplo, Leitão Ramos ocupa-se de toda a carreira teatral de Palmira Bastos, quando esta apenas protagonizou um filme; mais uma vez, um trabalho meritório, mas que porventura não teria lugar neste dicionário); a diminuta atenção àqueles que, de facto, viveram para a sétima arte (a entrada sobre Henrique Alegria, um dos sócios fundadores da Invicta, sabe a muito pouco) -, ou seja, é uma escolha consciente, mas não menos criticável.

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