Os Estudos Literários e a FCT

Em 2020-2021, 0,5% dos “projectos maiores” aprovados e 0,6% de todos os “projectos exploratórios” aprovados contemplaram os Estudos Literários. 0,5 e 0,6%: é isto que valem todas as Literaturas nos projectos FCT.

Surpreendentemente, saíram na passada quarta-feira, dia 28 de Julho, os resultados do concurso para financiamento de Projectos de Investigação Científica & Desenvolvimento Tecnológico em todos os domínios científicos – 2021. Foi uma surpresa porque, até agora, se havia algo em que a ciência em Portugal tinha alguma confiança era na total imprevisibilidade do seu financiamento. Neste campo, reconheço que a evolução tem sido positiva: no anterior concurso, os resultados saíram pouco mais de seis meses depois da submissão de candidaturas; desta vez, foram apenas quatro meses e meio. Se isso significar, como espero, um novo normal, a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) merece elogio. No entanto, pelo menos para a área de Estudos Literários, o elogio esgota-se praticamente aí.

Depois do bodo aos pobres que foi o concurso de 2017, quatro anos volvidos, os números parecem ainda impressionantes: para todas as áreas científicas, houve um total de 551 projectos financiados em 2021, que se juntam aos 314 de 2020 – mais de 850 projectos financiados em apenas dois anos.

No entanto, a realidade tem sempre matizes e já foi dito o suficiente sobre o modo inventivo como a FCT cria as suas estatísticas. Na realidade, neste concurso, nos dois últimos anos, foram submetidos 10717 projectos; a taxa real de aprovação foi, pois, de 8,07%. Em cada dez projectos submetidos, houve menos de um projecto aprovado.

Neste ano, e bem, a FCT recuperou a ideia de abrir o concurso também a Projectos Exploratórios mais pequenos, com financiamentos muito menores: por isso, dos 551 projectos aprovados em 2021, 246 foram “projectos de investigação” maiores (com financiamento até 250 mil euros), como era até agora a regra; e 305 foram “projectos exploratórios”. Isto significa que, de facto, em dois anos, foram aprovados 560 projectos “maiores” e 305 projectos “menores”.

Em Estudos Literários (e, apesar de estarmos no mesmo painel, não conto aqui com as submissões de Ciências da Linguagem), nestes dois anos houve cinco projectos aprovados para todos os Centros de Investigação em Literaturas de todo o país; cinco projectos, em dois anos: três projectos maiores e dois exploratórios. Fazendo as contas, em 2020-2021, 0,5% dos “projectos maiores” aprovados e 0,6% de todos os “projectos exploratórios” aprovados contemplaram os Estudos Literários. 0,5 e 0,6%: é isto que valem todas as Literaturas nos projectos FCT.

Mas o problema não se esgota aqui. O júri que avaliou este ano os projectos de Literatura era composto por cinco pessoas, todas decerto investigadoras estimáveis (de novo, deixo de lado os membros do júri que eram da área de Ciências da Linguagem). Eu percebo que não possa haver um especialista de cada uma das “literaturas” estudadas em Portugal no júri; quem quer que escolha estes júris tem de fazer opções. O problema é que, e este é um facto recorrente há muitos anos nos júris de Literatura da FCT, não há qualquer diversidade real de perspectivas de análise ou de áreas, espaços ou línguas de investigação. Todos (não estou a exagerar; os curricula são públicos), rigorosamente todos os membros do júri deste ano dizem-se especialistas em Literatura Comparada; uns fazem mais estudos italianos (repare-se que não estudam literatura italiana), outro românicos, uma estudos ingleses, um pós-humanismo, mas todos exactamente na mesma perspectiva.

Entendamo-nos: tenho grande admiração e reconheço grande valor a muitos colegas que fazem investigação nesta área. Contudo, é preciso dizer que o mundo dos Estudos Literários não se esgota aqui. Eu já nem quero referir o facto de não haver ninguém nestes júris que estude sequer uma linha de qualquer autor português ou de língua portuguesa. Contudo, tenho de insistir no facto de, nos últimos dez anos, nos concursos FCT nunca ter havido um único especialista em Literatura Grega e/ou Latina (que são a minha área), sob uma qualquer perspectiva que seja. Em Portugal estas não são áreas menores: dedicam-se aos Estudos Clássicos dois dos melhores centros de investigação na área da Literatura em Portugal (segundo as avaliações da própria FCT). Eu repito: pelo menos nos últimos dez anos, nunca nenhum projecto meu ou de alguém do meu centro de investigação foi avaliado por alguém que estudasse sequer uma linha de latim ou de grego; e eu não acho isto normal. Bem sei que há quem ache que basta ler as traduções dos textos antigos para fazer investigação nesta área. É preciso dizer claramente que isso não é verdade. Eu não conheço ninguém que publique nas revistas ou editoras mais competitivas (para usar esta novilíngua da ciência contemporânea) que faça investigação em Estudos Clássicos com base em traduções. Volto a dizer: eu percebo que nem todas as áreas, perspectivas ou literaturas possam estar sempre representadas em todos os júris da FCT; mas que haja o monopólio destes júris por apenas uma área e que haja literaturas que nunca tiveram, em dez anos, um único membro do júri da sua própria área de estudo parece-me incompreensível.

Mas a um mal acrescenta-se ainda outro. A monotonia destes júris reflecte-se necessariamente nos resultados. Sem nenhuma surpresa, e cingindo-me apenas aos dois últimos anos, dos cinco projectos de Estudos Literários aprovados pela FCT, quatro envolvem uma perspectiva pós-colonialista. Certamente, todos os vencedores serão excelentes (os que conheço são óptimos, de facto) e, lendo pelo menos os títulos dos projectos, parecem-me todos relevantes (sem ponta de ironia). Não é isso que está em causa. Obviamente, as perspectivas pós-coloniais são actualmente muito relevantes em termos sociais e merecem uma atenção por parte do financiamento público. De novo, não é isso que está em causa. O que eu não aceito é que, na prática, isso queime tudo o que está à volta e se transforme numa espécie de pensamento único a que todos tenhamos de nos render para obter financiamento (como eu oiço à boca pequena entre os meus colegas). Não aceito que os júris escolhidos pela FCT venham a Portugal afunilar de facto o mundo dos Estudos Literários apenas em torno dos tópicos pós-colonialistas e destinem a investigação portuguesa financiada em projectos competitivos exclusivamente a esse tópico, matando a diversidade de perspectivas; porque, se eu não ponho em causa a excelência dos projectos aprovados nem a importância que este tipo de estudos tem, recuso aceitar que, em Portugal, sejam estes os únicos temas a terem submetido projectos excelentes a merecerem financiamento.

Bem sei que não é a Presidente da FCT a ditar o que o júri do painel de Literaturas deve escolher. Mas há alguém que escolhe estes júris ou os seus coordenadores; e há alguém que, mesmo quando as pessoas mudam, escolhe sempre o mesmo tipo de júri. Na prática, e a prazo, isso significará um estreitamento de perspectivas e o triunfo de um pensamento único que não pode senão vir a ser muito negativo para a área dos Estudos Literários e das Humanidades em geral. O monolitismo é o contrário da ciência.

Sob a capa da competitividade e da submissão às novas agendas sociais, por mais justas que sejam, a FCT arrisca-se a asfixiar os Estudos Literários. É isso que queremos?

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