Humanidades para o Futuro

As Humanidades têm e devem continuar a ter contributos essenciais a dar, assim saibam as instituições políticas, de ensino superior e de apoio à investigação científica reconhecê-lo.

Talvez tenha havido um tempo em que era possível falar das Humanidades sem que o (real ou exagerado) diagnóstico de crise nos viesse imediatamente à ideia. Na verdade, de há algumas décadas para cá, tudo se passa como se as Humanidades vivessem num estado de crise permanente. Em diversos países tem-se assistido a um processo de diminuição da procura dos cursos na área das Humanidades, cortes no financiamento público à investigação nesta área e crescente precarização dos vínculos de professores e investigadores.

É evidente que muitos destes problemas são transversais ao ensino superior público e à investigação científica, fruto de décadas de “capitalismo académico” e consequente tendência para se considerar os investigadores como mão-de-obra barata a explorar transitoriamente, acompanhada pela tentação de se considerar o financiamento como um investimento e, logo, muitas vezes descurar o apoio à investigação fundamental privilegiando-se a investigação aplicada que alegadamente poderá trazer maior retorno financeiro. No entanto, essas dinâmicas fazem-se sentir de forma mais gravosa em áreas, como a das Humanidades, que já de si não são geralmente consideradas prioritárias por governos e agências de financiamento.

Por outro lado, e embora estas características nem sempre sejam valorizadas, é claro o que a sociedade tem a ganhar com uma presença forte das Humanidades. Refiro-me ao tipo de racionalidade característica destas disciplinas e que passa, para dar apenas alguns exemplos, por um cultivo da história e da imaginação e, nos melhores casos, pelo desenvolvimento de uma atitude crítica indispensável à deliberação ética e política que se espera de sociedades maduras e democráticas. Percebe-se, portanto, aquilo que se tem a perder quando se permite a progressiva erosão desta área.

Foi com este pano de fundo em mente que, no passado mês de Maio e após meses de intensas discussões, dezenas de investigadores europeus em início de carreira aprovaram, no âmbito do Fórum de Jovens Investigadores sobre o Futuro das Humanidades [1] (organizado como parte da Conferência Europeia das Humanidades) o Relatório Humanidades para o Futuro: uma nova agenda europeia.[2] O relatório faz um levantamento das principais preocupações dos jovens investigadores no que diz respeito aos desafios e obstáculos com que são confrontados na sua investigação e nas suas carreiras e estabelece um conjunto de prioridades e recomendações para os próximos anos.

No que toca aos desafios que se colocam a quem quer fazer carreira na área, assinala-se a dificuldade no acesso a financiamento de projetos, a avaliação muitas vezes inadequada e, claro, a ausência de estabilidade laboral. No Fórum comentava-se, em jeito de piada, que se geralmente um investigador jovem é caracterizado por não ter ainda tido acesso a uma posição estável na carreira, então talvez o nosso sistema tenha encontrado a tão procurada fórmula da juventude: todos precários, seremos talvez jovens para sempre.

Neste contexto, os investigadores apelam a uma transformação do ensino superior e da investigação a nível europeu, colocando a ênfase em questões como a da diversificação dos currículos, a garantia da proteção da autonomia e bem-estar dos investigadores, e a promoção de uma interdisciplinaridade que faça sentido a vários níveis. No que diz respeito a este último ponto, outro dos resultados da conferência, a Declaração de Lisboa constitui já um importantíssimo passo, porquanto promete que a interdisciplinaridade passará do papel para a realidade, nomeadamente através da inclusão transversal de disciplinas de ciências e de Humanidades em todos os níveis (incluindo os Doutoramentos) e todas as áreas de formação na Europa, ajudando assim a contrabalançar a tendência recente para a hiperespecialização (tantas vezes de vistas curtas), contrapondo-lhe uma visão ampla do conhecimento e da formação.

No entanto, muito (quase tudo) ainda está por fazer, desde a garantia de que o financiamento da ciência e investigação é verdadeiramente uma prioridade, passando pela estabilidade das carreiras e a implementação da prometida carreira única de investigação a nível europeu, até à criação de uma cultura de conhecimento que permita preparar o futuro das nossas sociedades de forma racional e ponderada. Na antecipação desse futuro, e como parte inextricável desse conhecimento, as Humanidades têm e devem continuar a ter contributos essenciais a dar, assim saibam as instituições políticas, de ensino superior e de apoio à investigação científica reconhecê-lo.

Como em todas as situações, também nesta há que começar por algum lado. E não seria despiciendo se, neste caso, o princípio fosse mesmo o da estabilização das carreiras dos investigadores em todas as áreas, assim conferindo ao sistema científico e tecnológico nacional uma robustez que acabaria com a precariedade generalizada, e evitaria a perda de alguns dos seus melhores pela falta de oportunidades e impossibilidade de acesso a uma carreira digna. Medidas como a integração dos investigadores na carreira de investigação científica e a diminuição do rácio de vínculos precários na investigação são fáceis de enunciar, mas têm sido difíceis de implementar. Eis um importantíssimo legado que esta legislatura poderia deixar, assim houvesse capacidade e vontade para tal.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

[1] O Fórum foi organizado por Ana Cristina Falcato (IFILNOVA, Universidade Nova de Lisboa), Gonçalo Marcelo (CECH, Universidade de Coimbra / Católica Porto Business School), Leonor de Medeiros (CHAM e DH, FCSH, Universidade Nova de Lisboa), Raimundo Henriques (CFUL, Universidade de Lisboa) e Telmo Pereira (Universidade Autónoma de Lisboa / Instituto Politécnico de Tomar / UNIARQ, Universidade de Lisboa). A Conferência Europeia das Humanidades, que acolheu e tornou possível o Fórum, foi conjuntamente organizada pelo CIPSH, UNESCO e FCT, em articulação com a Presidência Portuguesa do Concelho da União Europeia.

[2] O relatório continua a recolher subscrições de investigadores nas Humanidades em início de carreira (estudantes de pós-graduação ou investigadores até 10 anos após a conclusão do seu doutoramento) através de mensagem enviada para YouthForum_EHC@fct.pt indicando o nome e afiliação.

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