Um bacalhau no teatro para nos fazer pensar no mundo

Acts of Cod é teatro-dança sobre o fiel amigo, e sobre o impacto da sobrepesca nos oceanos. Está em cena no Teatro Sá da Bandeira, no Porto, até domingo.

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Uma ilustração de Tommy Luther para este Acts of God, em cena no Porto DR

O Muro dos Bacalhoeiros fica umas ruas abaixo, junto ao Douro, mas é no Teatro Sá da Bandeira, no Porto que, até domingo, se pode ver Acts of Cod, produção de teatro-dança da Esquiva - Companhia de Dança, a partir de uma ideia original de Tommy Luther. O inglês faz também a direcção artística e a encenação desta peça que nos leva em viagem pela história da pesca do bacalhau, que esticou os nossos mares – e os de dezenas de países – até às costas da Terra Nova e da Gronelândia. Mas que é também um mergulho no impacto da humanidade sobre os ecossistemas marinhos. 

O peixe que veio do frio continua a marcar a nossa cultura, ainda que hoje sejamos quase só consumidores de uma espécie que, como outras, está sujeita aos dilemas da sobreexploração dos mares e do impacto das alterações climáticas nos ecossistemas marinhos e respectivas cadeias tróficas. O bacalhau, que nas lojas se apresenta muitas vezes como “graúdo”, está lá por cima dessa cadeia, como outros seres ainda maiores com quem partilha os oceanos e o palco deste Acts of Cod: uma baleia e um tubarão fazem-lhe companhia, para além de um lagostim, dando um toque de fantástico a uma narrativa em que, tal como num navio da antiga frota branca, o actor Alexandre Sá e  a actriz Dóris Marcos, e as intérpretes de dança Sara Santervás e Inês Queirós são submetidas a múltiplos papéis. 

Fazer tudo a bordo

Os portugueses são personagens absolutamente secundárias do imperdível livrinho Bacalhau, Biografia do Peixe que mudou o mundo, do norte-americano Mark Kurlansky. Mas cá no rectângulo uma história de cinco séculos, e principalmente a mobilização de mais de 21 mil homens durante o Estado Novo, para uma pesca ainda realizada com meios ancestrais e veleiros míticos, deixou marcas para muitos livros mais. O que levou Maria Amorim, da Esquiva, a interessar-se por este projecto iniciado por Tommy Luther há já uma década, ainda em Inglaterra. 

Enquanto noutros países os arrastões transformavam pescadores em operários a tratar peixe numa fábrica a bordo de um navio, acelerando a depredação deste recurso, ente nós ir ao bacalhau significava saber remar e usar uma vela, saber orientar-se no mar e pescar, descarregar, amanhar o peixe e, num intervalinho, descansar. Uma pesca mais sustentável que já não tinha lugar no mundo, nos anos 70; e um trabalho duríssimo, feito, como descrevia a antropóloga canadiana Sally Cole num artigo de 1990, em nome de God, Cod, Country and Family - o “Deus pátria e Família” de Salazar, com um cheirinho a bacalhau pelo meio. 

Ao quarteto protagonista deste Acts of Cod - o inglês é bem mais jeitoso que o português para trocadilhos com o fiel amigo, como se lê – foi assim pedido, também, que se desdobrassem em múltiplas tarefas. Todos dançam, todos ajudaram a produzir elementos de cena, todos interpretam texto. Texto que foi também construído por todos, a partir da direcção de Tommy Luther, que os orientou nas pesquisas para esta produção, não fossem eles perder-se no nevoeiro, como na história real

Duas sessões no sábado

Regressados ao navio, sãos e salvos, eles que num momento são seres marinhos, noutros são também capitão (Inês Queirós), primeiro imediato (Dóris Marcos), 2.º imediato (Alexandre Sá), num convés onde não falta um novato, ou verde (Sara Santervás), numa produção “com uma grande intensidade física”, explica ao PÚBLICO Mariana Amorim, da Esquiva. Que tem a cargo a assistência de direcção artística, coreografia e produção desta peça que estreou esta quinta-feira e que volta a subir ao palco esta sexta à noite (20h), no sábado (18h e 20h) e no domingo (16h30), antes de zarpar para outro cais. 

Mais do que uma simples história da pesca do fiel amigoActs of Cod “é um desafio à reflexão sobre o paralelismo da nossa história com a do bacalhau, à necessidade de preservarmos ecossistemas e de respeitarmos espécies, sem a saga desenfreada do consumo massificado”, descreve Tommy Luther, que contou, neste trabalho, com a composição e interpretação musical de Domingos Alves, cenografia e manipulação de marionetas de Hugo Ribeiro, a videografia de Clara Rêgo e o desenho de luz de Luís Ternus e Diogo Barbedo.

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